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Serena Chopra

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Serena Chopra, uma fantástica fotógrafa indiana, com um trabalho fascinante dedicado ao Butão.

Butão que, também a mim, me fascinou com as suas gentes, a cultura ferozmente preservada e protegida, a relação com os Elementos. Agora, como todo o resto do Mundo, numa época em que começam a surgir contradições, tentações, escolhas sociais.

Não percam.

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Serena offers the viewer a portal into the lives of her subjects. Chopra spent five years in Bhutan photographing a community as it experienced a shift towards modernity. The work, “Bhutan , A Certain Modernity” (2007) examines the changing environment and the people within it. Wide-views of the rural mountainous landscape flow into voyeuristic flashes of dancers at a nightclub; many of the same individuals from the clubs are seen intimately, praying at home or in a temple. Portraits of the royal family commingle with images of farmers in the hills, invoking the spectrum of serenity and chaos of Bhutan as it crosses between past and future.

Chopra’s visual study of the culture came at a pivotal time in Bhutan’s history. After 100 years of monarchy in 2007 the King, Jigme Sinye Wangchuck voluntarily abdicated the throne to his son, the crown prince of Bhutan. The Bhutanese’ emphasis on creating a “gross national happiness” was a serious attempt to ensure government policies reached beyond the usual concerns for financial growth. The Bhutanese inner path is highlighted and exposed through Chopra’s revealing images. Her portraits, landscapes and interior compositions capture life’s subtleties and complexities within the society in a formal and astute manner.

In her most recent project, Chopra is exploring the lives of residents of Majnu Ka Tilla, a Tibetan community in Dehli, where thousands of exiles have lived for nearly 40 years. Chopra photographs and interviews individuals, coupling image and text in a diary-like format, revealing the population’s views on life and a communal optimism that one day they will return to Tibet.

“I waned to get to know the real Tibetan, the person, his or her feelings, what his or her life was like in reality. Perhaps I would gain insight into what freedom meant to them.”— Serena Chopra

Chopra was born in Secunderabad, India. Her first body of work from Bhutan was exhibited in solo shows in New Delhi, Bhutan and New York. A publication of this work, Bhutan, A Certain Modernity was released in 2007 with a foreword by Her Majesty Queen Ashi Dorji Wangmo Wanchuk. Chopra’s work has been included in group shows and published extensively in India.

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Buthan

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Fotografia: Butão – João Martins Pereira

Butão

Publicado na revista “Outras Coordenadas”, nº2, Setembro/Outubro 2011

O A319 da Druk Air levantou de Katmandou numa manhã gloriosa. Era Novembro, o ar estava fresco mas de um brilho cortante de cristal, límpido e transparente a perder de vista.

O voo para a Terra do Dragão Trovejante (o Reino do Butão) é, em si mesmo, um acontecimento e, por mais que tenha sido lido, contado, descrito ou fotografado, nada nos prepara para o que está para acontecer.

Atravessadas as nuvens de algodão branco imaculado, mergulhamos no azul quase eléctrico do céu e entramos numa outra dimensão. Estamos, como Judy Garland feita Dorothy, “over the rainbow”, acima das nuvens e acima da terra. A rota é esmagadora, deixando à vista próxima quatro das cinco montanhas mais altas do Mundo, os Montes Everest, Lhotse, Makalu e Kangchenjunga.

Entendo melhor, ainda que sem compreender completamente, o fascínio do alpinismo extremo, a conquista dos grandes picos. Imagino que a sensação de tocar o tecto do Mundo, de alcançar o último ponto de contacto físico com o espaço infinito “lá em cima” seja avassaladora e valha todas as penas, sacrifícios e dores da subida. A chegada ao fim da Terra e ao início do Céu Curiosamente, ainda na véspera tinha jantado na dimensão mais terrena do Rum Doodle, o restaurante fetiche dos alpinistas, em Katmandou. As paredes, o tecto, os balcões, enfim, todo o restaurante está forrado de fotografias, autógrafos, peças de equipamento, gorros, luvas, registos de alpinistas e escaladas anteriores, umas históricas, antigas ou recentes, outras falhadas e porventura trágicas. Na parede atrás da minha mesa, estava a bandeira portuguesa autografada pelo João Garcia. Do outro lado do Mundo, por detrás das montanhas, reencontramos a nossa essência. Conforta a alma e, vá-se lá saber porquê, prende a voz e enevoa a vista.

Pelo tempo de voo, deveria estar a iniciar a aproximação ao Butão. Contudo, em toda a extensão que o ângulo de visão que a vigia do avião permitia, via apenas e só um maciço montanhoso. Só depois soube que Paro, o único aeroporto internacional do Butão escalado apenas pela Druk, a transportadora aérea butanesa, está a quase 3.000 metros de altitude, um vale estreito e não muito longo, encaixado entre montanhas acima dos 5.000 metros … Olhei para o mapa, vi a rota marcada a pontinhos vermelhos até ao aeroporto, mesmo ali atrás das montanhas.

Só (ainda) não fazia ideia como se chegava lá. Foi então que o comandante decidiu dar uso ao sistema de som e, finalmente, percebi. “Senhores passageiros estamos a iniciar a aproximação à pista do aeroporto de Paro. Para os que visitam o Butão pela primeira vez, informo que a abordagem é feita em ângulos de voo menos habituais, com inclinações laterais pronunciadas, pelo que passaremos a baixa altitude sobre algumas árvores, habitações e relevos naturais. Os pilotos da Druk Air são especialmente qualificados e treinados para a abordagem à pista de Paro, pelo que a segurança dos passageiros está garantida. Desejo a todos a continuação de uma boa viagem”. Começou então uma manobra de aterragem alucinante, a bordo de um A319 com espírito de Red Bull Air Show. O avião, literalmente, “entrou” pela montanha, numa rota sinuosa de procura de vales e espaços entre montes, voando em inclinações bem acima dos 60 graus, ora para um lado, ora para o outro, porque de outra maneira simplesmente não caberia. E, facto, a passar poucas dezenas de metros acima de construções, árvores, pessoas, pontes, vacas e o que mais passasse lá por baixo. À saída de um último gancho, vi, finalmente, a pista para onde o aparelho, recuperada a compostura e a posição horizontal, se precipitou, talvez ele próprio ansioso por descer a chão firme. Logo no primeiro contacto com a Terra do Dragão Trovejante, concluí que a passagem labiríntica por entre os montes é, afinal, uma fantástica máquina do tempo.

Do lado de cá, entra-se noutra era, noutro tempo, noutra dimensão. Supostamente é um pequeno Reino (na verdade, é um conto de encantamentos), cravado na vertente Oriental dos Himalaias, comprimido entre a China, o Tibete e a Índia. Tem aproximadamente o tamanho da Suíça, 39.000 quilómetros quadrados, dos quais mais de 70% cobertos por manchas florestais. Estica-se, para lá das nuvens, até aos 7.500 metros de altitude e dá pátria a pouco mais de 600.000 pessoas. É, ainda, o guardião da escola Vajrayana do Budismo Mahayana, uma complexa, multidisciplinar e distinta escola de pensamento budista, desenvolvida ao longo dos séculos e que hoje tem o seu reduto final no Reino do Butão.

A escola Vajrayana desenvolveu um ritual próprio, exclusivo e distinto das outras correntes de pensamento e prática do Budismo, baseado nas Tantras, as principais escrituras (daí poder ser igualmente referido como “Budismo Tântrico”), escritas numa língua codificada, inacessível a não-iniciados, parte de um complexo e misterioso sistema de comunicação verbal, visual e não verbal, “the twilight language”. O Budismo mantém, alias, uma presença permanente, vibrante e marcante na sociedade butanesa. Dzongs (as autoridades administrativas regionais associadas ao mosteiro principal), mosteiros, stupas (as construções rituais de cúpulas abobadadas e terminadas em pináculo), as rodas de oração pintadas, as bandeiras e flâmulas de várias cores com inscrições rituais, espalhadas pelos montes, pelas habitações e pelos locais públicos, são presença constante no país. Os monges de hábitos escarlates percorrem as ruas das povoações e calcorreiam montes na direcção de mosteiros pendurados nas escarpas mais remotas e agrestes de paredes de rocha aparentemente inacessíveis, de que o exemplo mais conhecido é o famoso “Tiger’s Nest”.

Pergunto-me como se acede aos mosteiros, mas mais me pergunto como foram edificados e como são abastecidos. As pessoas que circulam as stupas agitando pequenas rocas em movimentos circulares, o som encantatório de gongos, singing bowls e sinos rituais, cheiros inebriantes de incensos e essências tornam o tempo lento.

As originalidades e peculiaridades deste pequeno reino são, contudo, infindáveis. Sendo uma monarquia, o regime político configura uma democracia parlamentar representativa. O ano de 2008 foi, aliás, determinante para a evolução pacífica do regime político e da forma de governo do país. De facto, em 2008 foi aprovada a Constituição, tiveram lugar as primeiras eleições gerais democráticas que escolheram o Primeiro-Ministro e, simultânea e paradoxalmente, foi coroado Jigme Khesar Namgyel Wangchuck, um jovem nascido em 1980, como o 5º Druk Gyalpo, ou seja o 5º Rei Dragão do Butão. Um dos compromissos assumidos pelo jovem Rei foi a defesa intransigente do “Gross National Happiness” como primeira prioridade da nação, considerando-a mais importante para o povo que o cantado e decantado “Gross Domestic Product”, o nosso PIB, indicador de referência em todo o “mundo material”.

O índice GNH é um conceito fascinante, desenvolvido nos anos 70 pelo 4º Druk Gyalpo, que determina que as pessoas têm obrigação de ser felizes, que o reino tem obrigação de fazer os seus habitantes felizes, e que, por isso, as principais decisões, muitas vezes estruturantes e fundamentais, devem ser tomadas com o objectivo de aumentar a felicidade e não necessariamente de aumentar a riqueza material. Aprovado pelo Parlamento como indicador fundamental do progresso do país, o índice GNH deu lugar a toda uma dinâmica nacional de medição do “grau de felicidade”. Sugiro que faça uma pequena busca na internet se quiser ter uma ideia mais aproximada de todo o racional por detrás deste conceito. A medição assenta em nove princípios fundamentais: bem-estar psicológico, valor do tempo, vitalidade comunitária, cultura, saúde, educação, diversidade ambiental, estilo de vida e governo. Medidas práticas? Deixo apenas uma, a meu ver ilustrativa: o Butão concede apenas 5.000 vistos anuais a turistas estrangeiros. A proposta de duplicação desse número de entradas foi, em 2009, chumbada no Parlamento por … poder afectar negativamente o índice GNH!

É, aliás, notório o cuidado posto na defesa da tradição e da herança cultural. Um indicador espantoso foi para mim o facto de o Butão ter um traje nacional que a esmagadora maioria das pessoas usa diariamente (por sinal, nos Dzonghs e mosteiros, só é permitida a entrada a nacionais que enverguem o traje nacional). Desde o século XVII, os homens usam o gho, uma espécie de quimono muito largo, até aos joelhos, traçado à frente e apertado com um cinto tecido, com golas e grandes punhos brancos. O volume de pano permite transportar pequenos objectos num bolso interior. O traje completa-se com sapatos pretos e meias altas, também pretas. As mulheres usam a kira, basicamente um pano enrolado à volta do corpo, abaixo dos braços, preso por pregadeiras e alfinetes artesanais, os koma. O traje fica completo com uma camisa de um tecido tipo linho, chamada wonju e, se o tempo o pedir, um casaco colorido chamado toego. É um espectáculo admirável ver toda uma população orgulhosa do seu traje nacional.

Tal como é quase comovente o orgulho com que falam do seu animal nacional, o Takin (burdorcas taxicolor), um antílope raríssimo, com o aspecto de uma cabra gigante, de pelo denso e comprido, que vive acima dos 4.000 metros de altitude. Matar um takin é um dos crimes mais graves que se pode cometer no Butão. Ou da sua arquitectura multicolor de madeira entalhada ou, paradoxo dos paradoxos, o seu desporto nacional, o tiro com arco, que praticam em pistas especialmente construídas, com grandes assistências e material sofisticado. Com ou sem GNH, há que procurar ser mais feliz. Eles parecem consegui-lo. É um destino único e imperdível.

Vá ao Butão e faça o favor de ser mais feliz.!