Fotografia: João Martins Pereira
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Pig ride
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Butão
Publicado na revista “Outras Coordenadas”, nº2, Setembro/Outubro 2011
O A319 da Druk Air levantou de Katmandou numa manhã gloriosa. Era Novembro, o ar estava fresco mas de um brilho cortante de cristal, límpido e transparente a perder de vista.
O voo para a Terra do Dragão Trovejante (o Reino do Butão) é, em si mesmo, um acontecimento e, por mais que tenha sido lido, contado, descrito ou fotografado, nada nos prepara para o que está para acontecer.
Atravessadas as nuvens de algodão branco imaculado, mergulhamos no azul quase eléctrico do céu e entramos numa outra dimensão. Estamos, como Judy Garland feita Dorothy, “over the rainbow”, acima das nuvens e acima da terra. A rota é esmagadora, deixando à vista próxima quatro das cinco montanhas mais altas do Mundo, os Montes Everest, Lhotse, Makalu e Kangchenjunga.
Entendo melhor, ainda que sem compreender completamente, o fascínio do alpinismo extremo, a conquista dos grandes picos. Imagino que a sensação de tocar o tecto do Mundo, de alcançar o último ponto de contacto físico com o espaço infinito “lá em cima” seja avassaladora e valha todas as penas, sacrifícios e dores da subida. A chegada ao fim da Terra e ao início do Céu Curiosamente, ainda na véspera tinha jantado na dimensão mais terrena do Rum Doodle, o restaurante fetiche dos alpinistas, em Katmandou. As paredes, o tecto, os balcões, enfim, todo o restaurante está forrado de fotografias, autógrafos, peças de equipamento, gorros, luvas, registos de alpinistas e escaladas anteriores, umas históricas, antigas ou recentes, outras falhadas e porventura trágicas. Na parede atrás da minha mesa, estava a bandeira portuguesa autografada pelo João Garcia. Do outro lado do Mundo, por detrás das montanhas, reencontramos a nossa essência. Conforta a alma e, vá-se lá saber porquê, prende a voz e enevoa a vista.
Pelo tempo de voo, deveria estar a iniciar a aproximação ao Butão. Contudo, em toda a extensão que o ângulo de visão que a vigia do avião permitia, via apenas e só um maciço montanhoso. Só depois soube que Paro, o único aeroporto internacional do Butão escalado apenas pela Druk, a transportadora aérea butanesa, está a quase 3.000 metros de altitude, um vale estreito e não muito longo, encaixado entre montanhas acima dos 5.000 metros … Olhei para o mapa, vi a rota marcada a pontinhos vermelhos até ao aeroporto, mesmo ali atrás das montanhas.
Só (ainda) não fazia ideia como se chegava lá. Foi então que o comandante decidiu dar uso ao sistema de som e, finalmente, percebi. “Senhores passageiros estamos a iniciar a aproximação à pista do aeroporto de Paro. Para os que visitam o Butão pela primeira vez, informo que a abordagem é feita em ângulos de voo menos habituais, com inclinações laterais pronunciadas, pelo que passaremos a baixa altitude sobre algumas árvores, habitações e relevos naturais. Os pilotos da Druk Air são especialmente qualificados e treinados para a abordagem à pista de Paro, pelo que a segurança dos passageiros está garantida. Desejo a todos a continuação de uma boa viagem”. Começou então uma manobra de aterragem alucinante, a bordo de um A319 com espírito de Red Bull Air Show. O avião, literalmente, “entrou” pela montanha, numa rota sinuosa de procura de vales e espaços entre montes, voando em inclinações bem acima dos 60 graus, ora para um lado, ora para o outro, porque de outra maneira simplesmente não caberia. E, facto, a passar poucas dezenas de metros acima de construções, árvores, pessoas, pontes, vacas e o que mais passasse lá por baixo. À saída de um último gancho, vi, finalmente, a pista para onde o aparelho, recuperada a compostura e a posição horizontal, se precipitou, talvez ele próprio ansioso por descer a chão firme. Logo no primeiro contacto com a Terra do Dragão Trovejante, concluí que a passagem labiríntica por entre os montes é, afinal, uma fantástica máquina do tempo.
Do lado de cá, entra-se noutra era, noutro tempo, noutra dimensão. Supostamente é um pequeno Reino (na verdade, é um conto de encantamentos), cravado na vertente Oriental dos Himalaias, comprimido entre a China, o Tibete e a Índia. Tem aproximadamente o tamanho da Suíça, 39.000 quilómetros quadrados, dos quais mais de 70% cobertos por manchas florestais. Estica-se, para lá das nuvens, até aos 7.500 metros de altitude e dá pátria a pouco mais de 600.000 pessoas. É, ainda, o guardião da escola Vajrayana do Budismo Mahayana, uma complexa, multidisciplinar e distinta escola de pensamento budista, desenvolvida ao longo dos séculos e que hoje tem o seu reduto final no Reino do Butão.
A escola Vajrayana desenvolveu um ritual próprio, exclusivo e distinto das outras correntes de pensamento e prática do Budismo, baseado nas Tantras, as principais escrituras (daí poder ser igualmente referido como “Budismo Tântrico”), escritas numa língua codificada, inacessível a não-iniciados, parte de um complexo e misterioso sistema de comunicação verbal, visual e não verbal, “the twilight language”. O Budismo mantém, alias, uma presença permanente, vibrante e marcante na sociedade butanesa. Dzongs (as autoridades administrativas regionais associadas ao mosteiro principal), mosteiros, stupas (as construções rituais de cúpulas abobadadas e terminadas em pináculo), as rodas de oração pintadas, as bandeiras e flâmulas de várias cores com inscrições rituais, espalhadas pelos montes, pelas habitações e pelos locais públicos, são presença constante no país. Os monges de hábitos escarlates percorrem as ruas das povoações e calcorreiam montes na direcção de mosteiros pendurados nas escarpas mais remotas e agrestes de paredes de rocha aparentemente inacessíveis, de que o exemplo mais conhecido é o famoso “Tiger’s Nest”.
Pergunto-me como se acede aos mosteiros, mas mais me pergunto como foram edificados e como são abastecidos. As pessoas que circulam as stupas agitando pequenas rocas em movimentos circulares, o som encantatório de gongos, singing bowls e sinos rituais, cheiros inebriantes de incensos e essências tornam o tempo lento.
As originalidades e peculiaridades deste pequeno reino são, contudo, infindáveis. Sendo uma monarquia, o regime político configura uma democracia parlamentar representativa. O ano de 2008 foi, aliás, determinante para a evolução pacífica do regime político e da forma de governo do país. De facto, em 2008 foi aprovada a Constituição, tiveram lugar as primeiras eleições gerais democráticas que escolheram o Primeiro-Ministro e, simultânea e paradoxalmente, foi coroado Jigme Khesar Namgyel Wangchuck, um jovem nascido em 1980, como o 5º Druk Gyalpo, ou seja o 5º Rei Dragão do Butão. Um dos compromissos assumidos pelo jovem Rei foi a defesa intransigente do “Gross National Happiness” como primeira prioridade da nação, considerando-a mais importante para o povo que o cantado e decantado “Gross Domestic Product”, o nosso PIB, indicador de referência em todo o “mundo material”.
O índice GNH é um conceito fascinante, desenvolvido nos anos 70 pelo 4º Druk Gyalpo, que determina que as pessoas têm obrigação de ser felizes, que o reino tem obrigação de fazer os seus habitantes felizes, e que, por isso, as principais decisões, muitas vezes estruturantes e fundamentais, devem ser tomadas com o objectivo de aumentar a felicidade e não necessariamente de aumentar a riqueza material. Aprovado pelo Parlamento como indicador fundamental do progresso do país, o índice GNH deu lugar a toda uma dinâmica nacional de medição do “grau de felicidade”. Sugiro que faça uma pequena busca na internet se quiser ter uma ideia mais aproximada de todo o racional por detrás deste conceito. A medição assenta em nove princípios fundamentais: bem-estar psicológico, valor do tempo, vitalidade comunitária, cultura, saúde, educação, diversidade ambiental, estilo de vida e governo. Medidas práticas? Deixo apenas uma, a meu ver ilustrativa: o Butão concede apenas 5.000 vistos anuais a turistas estrangeiros. A proposta de duplicação desse número de entradas foi, em 2009, chumbada no Parlamento por … poder afectar negativamente o índice GNH!
É, aliás, notório o cuidado posto na defesa da tradição e da herança cultural. Um indicador espantoso foi para mim o facto de o Butão ter um traje nacional que a esmagadora maioria das pessoas usa diariamente (por sinal, nos Dzonghs e mosteiros, só é permitida a entrada a nacionais que enverguem o traje nacional). Desde o século XVII, os homens usam o gho, uma espécie de quimono muito largo, até aos joelhos, traçado à frente e apertado com um cinto tecido, com golas e grandes punhos brancos. O volume de pano permite transportar pequenos objectos num bolso interior. O traje completa-se com sapatos pretos e meias altas, também pretas. As mulheres usam a kira, basicamente um pano enrolado à volta do corpo, abaixo dos braços, preso por pregadeiras e alfinetes artesanais, os koma. O traje fica completo com uma camisa de um tecido tipo linho, chamada wonju e, se o tempo o pedir, um casaco colorido chamado toego. É um espectáculo admirável ver toda uma população orgulhosa do seu traje nacional.
Tal como é quase comovente o orgulho com que falam do seu animal nacional, o Takin (burdorcas taxicolor), um antílope raríssimo, com o aspecto de uma cabra gigante, de pelo denso e comprido, que vive acima dos 4.000 metros de altitude. Matar um takin é um dos crimes mais graves que se pode cometer no Butão. Ou da sua arquitectura multicolor de madeira entalhada ou, paradoxo dos paradoxos, o seu desporto nacional, o tiro com arco, que praticam em pistas especialmente construídas, com grandes assistências e material sofisticado. Com ou sem GNH, há que procurar ser mais feliz. Eles parecem consegui-lo. É um destino único e imperdível.
Vá ao Butão e faça o favor de ser mais feliz.!
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