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António Gedeão (n. Rómulo de Carvalho, 1906-1997)

Pedra Filosofal

Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso,
em serenos sobressaltos
como estes pinheiros altos
que em verde e ouro se agitam
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.

Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma. é fermento,
bichinho alacre e sedento.
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.

Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel.
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa dos ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é Cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
para-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra som televisão
desembarque em foguetão
na superfície lunar.

Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida.
Que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre a mãos de uma criança.

Para muitos de nós, já dobrado o cabo dos 50, a poesia de Gedeão, chegou através da versão musicada deste poema, na belíssima e definitva criação de Manuel Freire. Curiosamente, a vida tem destas coisas e o Génio escolhe portador mas não olha a profissão que, para muitos, é (apenas?) um meio de subsistência. Gedeão nunca se dedicou às letras por inteiro (na verdade, na versão Rómulo de Carvalho era professor de Físico-Química no ensino secundário) nem, ao tempo, Freire fazia da música ofício. Juntos os seus talentos, nasceu uma das mais belas e simbólicas peças da canção popular portuguesa.
Em 1969, Manuel Freira cantou a “Pedra Filosofal” no Zip-Zip e marcou uma geração, a minha.