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Margarida Araújo

 Para a Margarida

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Rumo ao quadrante Sul,
Ali onde o olhar se aquieta e a Lagoa se agasalha de nortadas.
Uma bateira vermelha desliza, espelhada, por entre armadilhas e limos.
Rota ondulante, conduzida à vara, desenha incertas margens.
Cansada, dorme por vezes em camas de areia coberta com lençóis de nevoeiro.
Por aqui as cabanas vestem-se de caniços. São abrigos de gente e artes, idênticas, alinhadas, sempre com vista para o azul.

A sul,
por entre lendas e marés
encontro-me a pescar retratos:
um caranguejo de perfil,
amêijoas e berbigões num retrato de grupo,
um polvo em grande pose,
uma enguia de corpo inteiro,
um robalo em contra-luz.

E a Lagoa, de braços abertos,numa enorme panorâmica!

(Texto e fotografia: Margarida Araújo, in Lagoa de Óbidos. 4 quadrantes. 20 olhares ed. Mar d’ Água, 2008)

A Gazeta das Caldas e eu

                                                         

Há uns anos, mais propriamente em 2007, o Luís Costa Leal pediu-me um texto para publicar no Suplemento dedicado à Lagoa que a Associação Mar d’Água editava na Gazeta das Caldas.

A Lagoa está inscrita no meu ADN emocional, é, como lhe chamei na galeria de imagens do site, “Mi Patria Chica”.

À Gazeta ligam-me, por várias razões, laços de profunda e emotiva afectividade.

O meu Pai, nas muitas quimeras que cultivava, teve na Gazeta, em várias condições, funções e estatutos, umas das suas paixões maiores.

Nos idos de 72/73, a Gazeta publicou (creio que) dois números de um Suplemento chamado “Análise”. Dada a situação vigente, as tensões socio-políticas da região – a proximidade de Lisboa e das crises académicas, a tradição republicana e oposicionista das Caldas personificada na família Freitas, as desventuras permanentes do CCC – Conjunto Cénico Caldense  com a censura, os ecos próximos das lutas dos vidreiros da Marinha Grande, a perspectiva da Guerra Colonial – entregar a concepção e edição de um suplemento cultural a um grupo de jovens idealistas foi seguramente um arrojo (perigoso !) para a época. Eu era dos mais novos, talvez o mais novo de todos, de um grupo onde estavam o meu primo Zé Sancho, o Santiago Freitas, o Manuel Nunes, o Joca Ferreira, o Rogério Matias, entre outros.  Alguns já estavam em Lisboa na Universidade, outros (como eu) ainda penavam pelas agruras do 7º ano do Liceu. O facto é que os dois números que conseguimos publicar  não foram do agrado de uns tais senhores  que, à época, eram donos da inteligência, do pensamento e da expressão e a Gazeta foi (pouco) subtilmente “aconselhada” a suspender o “Análise”. Outros tempos ….

Desse grupo, creio que já não chegou a fazer parte o Zé Luís Almeida e Silva que, nessa altura e após cumprir a recruta no serviço militar, já teria procurado os ares mais desanuviados de Paris. O Zé Luís é, desde há anos a esta parte, um paladino da imprensa regional e Director da Gazeta.

O texto que escrevi, a muito custo e alguma dor, foi este –

Outubro de 1967

Chamo-me João Filipe e já fiz 10 anos. A minha irmã Susana tem 7 anos e como não sabia dizer o meu nome, chamava-me Japi.

Estou muito contente, já fiz a 4ª classe e o meu Avô Filipe deu-me um relógio. O meu Avô João já morreu e nunca o conheci.

Andei na Escola da Praça do Peixe e o meu Professor chamava-se Diniz. Tenho muitos colegas, o Zé Clérigo, o Rogério Abreu, o Fabian, o Ernesto que é da Guiné, o Moreno, o Serralha, o Zé Agnelo, o Mané e outros. Aprendi a ler, a escrever e a contar e sei os rios, as serras e os caminhos-de-ferro da Metrópole, de Angola e de Moçambique, foi assim que me ensinaram.

Agora vou para uma escola nova, chama-se Telescola e parece que as aulas são pela televisão. Não sei bem como é.

Moramos na Rua Capitão Filipe de Sousa, mesmo em frente à Garagem dos Abrantes. A nossa casa, onde eu nasci, faz esquina para a Rua do Jardim.

Faço colecção de caramelos, tenho a caderneta e uma data de repetidos, que troco na escola. Tenho a equipa do Benfica toda, o Eusébio, o Torres, o Coluna, o Simões, o Costa Pereira e os outros todos. Todas as semanas compro 5 tostões na loja do Sr. Martins, na esquina da Rua das Montras. Estou à espera que me calhe o nº da bola, para ficar com a bola que está lá, pendurada por cima da lata dos caramelos.

O ano passado estive doente, fui operado no Montepio e podia ter morrido. A minha Mãe diz que foi o Dr. Ernesto Moreira que me salvou. Ainda me lembro de ir todos os dias ao tratamento, fazer o penso com a Maria do Carmo.

Este ano já posso brincar à vontade e jogar pingue-pongue. O meu Pai jogava pingue-pongue no Sporting das Caldas com o Carlos Branco, o António Tavares, o Mário Capinha Reis, o Carlos Alves. Tiraram-me uma fotografia em cima da mesa, equipado como eles.

Eu jogo pingue-pongue em dois sítios. Aqui, na Rua do Jardim, às vezes jogo no Sindicato, mas a maior parte das vezes jogo no Parque, na Casa dos Barcos. Quem aluga as mesas é a D. Adelaide, que guarda a minha raquete dentro do armário. O marido dela é o Sr. Celestino, que foi guarda do Parque mas agora está doente e anda numa cadeira de rodas com o Chico, que é o cão mais gordo que eu já vi.

O Verão já acabou mas fui muitas vezes à praia da Foz, na camioneta dos Claras. A minha Mãe diz que a praia faz bem é de manhã, só que às vezes está tanto frio e tanto nevoeiro que temos que ficar fechados na barraca até ao meio-dia, a jogar às cartas e ao prego. Às vezes a minha Mãe dá-me dinheiro para comprar batatas fritas ou uma bola-de-berlim ao Justiça, que anda pela praia sempre de fato branco.

A Aberta este ano estava fechada. Para se lá chegar tem que se andar muito, subir e descer as dunas que mudam de lugar. Acho que é o vento que as empurra. Chegamos lá cansados e depois temos que voltar tudo para trás.

A Lagoa é muito grande. Apanha-se berbigão, amêijoa, ostras, camarão, caranguejos e pescam-se enguias, robalos, douradas, sargos, linguados. Nas pedras do Mar há muitos percebes e mexilhões.

Não fiz nenhuma viagem, só o que vejo na televisão e nos livros, mas acho que a Lagoa deve ser o sítio mais bonito do Mundo.

Outubro de 2007

Já fiz 50 anos. Guardo a nostalgia do João Filipe de há 40 anos atrás, que agora só os mais próximos e mais antigos conhecem e usam. Japi, só mesmo os que me conhecem de criança e, com os anos, vão sendo menos. Sou agora, mais vezes e para mais gente, João Martins Pereira, chamando a mim o apelido do meu Pai. A vida profissional tirou-me a familiaridade do nome próprio, tratamento pouco habitual na formalidade bacoca da nossa sociedade.

Cedo tive que procurar caminho próprio e lutar por melhores oportunidades. Como se diz, nem sempre de forma apreciativa, a Vida tirou-me das Caldas, mas não tirou as Caldas de mim. No meu caso, com muito orgulho, porque aqui estão as minhas remotas das minhas memórias, aqui está a minha gente, aqui estão os Amigos que guardo de há 40 anos até hoje. É aqui que eu pertenço, é aqui o meu porto seguro.

Ao longo destes 40 anos, quase tudo mudou. O Mundo mudou, o País mudou, as Caldas mudaram, nós próprios mudámos. Não tenho sequer a certeza que tudo tenha mudado sempre para melhor, o tempo faz o seu trabalho inclemente, deixando marcas nos corpos e nas almas. Somos hoje, afinal, o resultado do que fomos antes. Conheço hoje mais coisas do que há 40 anos, mas devo saber menos, porque tenho mais dúvidas do que tinha nessa altura.

Muitos dos nossos, e mesmo alguns de nós, já deixaram o porto, embarcaram na viagem grande. Cada um que parte, e tantos nos deixaram de forma tão estúpida, inesperada, injusta e prematura, faz-nos mais um buraquinho na alma e no ser, que nunca mais conseguiremos tapar. Foi assim com o meu Pai, assim foi com Amigos que nos deixaram.

Percorro hoje as Caldas à procura dos pontos cardeais da memória.

A casa onde nasci já não existe, a Garagem dos Abrantes é hoje o Mercado do Peixe, a minha escola está em ruínas, o Pinheiro Chagas e o Ibéria desapareceram há muito, a Praça do Peixe transformou-se numa inenarrável instalação, os Pavilhões do Parque continuam sem solução, a Quinta da Boneca foi urbanizada, os nossos campos de futebol desapareceram.

A minha cidade cresceu mas parece ter embaciado, perdeu o brilho. O trânsito tornou-se caótico, o ordenamento urbanístico incompreensível. Vejo a cidade sem uma grande manifestação cultural de referência, sem uma oferta turística de qualidade, sem um factor diferenciador que a salve da mediania e da mediocridade. Quem frequentou a Praça, à noite, há 30 anos, com a Zaira, o Convívio, o Bocage, o Central, o Lusitano e a Flor de Liz a funcionar em pleno e com frequência certa e fiel, lembra-se de centenas de pessoas a circular (os grupos das “piscinas”). Quem a visitar hoje encontra um deserto.

E vejo, principalmente, a asfixia da Lagoa da Foz, o abraço da morte que, ao longo dos anos, tem vindo a ficar cada vez mais apertado. Aos atentados ecológicos dos anos 60 e 70 (abertura do canal da Aberta por meios mecânicos motivada por interesses económicos, extracção descontrolada de areias destruindo as dunas móveis, despejo de esgotos, construção clandestina nas margens) seguiram-se décadas de abandono, falta de investimento, questiúnculas políticas e de poder. A Lagoa esteve às portas da morte. Perdeu-se tempo precioso. Se bem se recordam, já o tema do Pavilhão da Dinamarca na Expo98 (pois é, já lá vão outros 10 anos) era a nossa Lagoa e a proposta de desaçoreamento.

Hoje, pelo menos, o problema do saneamento parece estar em grande parte resolvido e o efeito imediato é visível. Vi, este Verão, um bando de mais de 60 flamingos na Lagoa. É a Natureza a confirmar que o esforço vale a pena, que o contributo, o empenho e a vigilância de todos são necessários. A ensinar-nos a querer perpetuar no tempo o nosso património de cultura e de afectos.

Pela minha parte, chego aos 50 anos reconhecido à Vida, que tem sido generosa comigo, proporcionando-me o que há 40 anos não sabia existir e o que há mais de 30, quando saí das Caldas, não sonhava sequer poder alcançar.
Acabei, por acasos vários da Vida e das andanças pelo Mundo, por conhecer Pessoas e personalidades, intelectuais e políticos, ricos e poderosos.

Mas é ainda e sempre com alegria e orgulho que, 40 anos passados, volto a dar um abraço ao Mané, quando passo pela Mercearia Pena e o reencontro no seu honesto trabalho ao balcão.

Por razões profissionais e por gosto pessoal, corri grande parte do Mundo. Vivi alguns anos noutros países, conheci outras gentes, outros costumes e outras culturas. Vi caprichos da Natureza, paisagens exóticas, obras fantásticas e belezas naturais inexcedíveis.

Procurei muitas vezes a Estrada de Damasco. Estou agora convencido que começa ali na Rainha e é cada vez com mais emoção que faço a Estrada da Foz.

Há poucos anos, tive possibilidade de concretizar o sonho de ter uma casa na Foz. E agora, como sempre, sempre que acordo e olho lá para fora, sempre que olho para a Lagoa à noite, sinto que este é o mapa da minha memória, que este é o meu lugar.

Hoje já não tenho dúvidas, a Lagoa é o sítio mais bonito do Mundo. E eu estou a voltar para casa.

A Lagoa, Mi Patria Chica

           

A Lagoa, a Aberta e a Praia do Mar da Foz são parte maior das memórias mais remotas da minha infância, das insanidades da minha juventude, da nostalgia nos meus tempos de vida no estrangeiro e do meu refúgio actual.

Por isso, o convite que recebi para participar na exposição de fotografia sobre a Lagoa que daria, depois, lugar ao livro editado pela Mar d’Água (ver o post Livros III), teve uma significado especial. Afinal, seria como fotografar o meu próprio mapa de referências afectivas.

Para além das fotografias, o Luís Costa Leal pediu-me um texto sobre a Lagoa para servir de introdução ao quadrante “A Oeste”.  Com a organização geográfica que fizemos da Lagoa para melhor distribuição das fotografias recebidas dos 19 autores participantes, “A Oeste” ficou a Pedra do Gronho, afinal uma das referências mais (re)conhecidas da Lagoa.

O texto que escrevi foi este –

“Há 50 anos que sei de ti, mas sei que ainda não te conheço.

Vi-te, senhora do engenho e do capricho, mil vezes mudar de cara. Meiga ou violenta, generosa ou pérfida, reinavas sobre os peixes e as gentes, as águas e as areias.

 Nem o Mar Oceano rompia a tua porta Aberta fechada.

 A cada partida, sussurravas, maternal, a carta da Vida aos robalos, aos sargos a às douradas, aos flamingos, às garças e às tarambolas. O gigante, sentinela de pedra alerta, os chamaria na hora de voltar.

 Viste-me nascer, ganhar asas e voar para longe. Como um jovem pássaro, tonto pela vertigem da primeira migração, acreditei que o vento sopra sempre na mesma direcção, que a maré vaza não volta a encher.

 E pensei em Adeus.

 Depois, em tanto e tanto Mundo te entrevi que, finalmente, entendi o teu silêncio sábio e ouvi o grito do Gronho.

 Olho-te e sei que voltei a casa!”

Livros – III

Nos idos de 2007, eu e a Margarida Araújo reencontrámo-nos, ao fim de quase 30 anos de contacto perdido. Participávamos, à data,  na mesma comunidade fotográfica, o “1000 imagens” .  Curiosamente, ou talvez não, o contacto, a princípio anónimo, surgiu por causa das fotografias da Foz do Arelho, paixão antiga comum, que ambos íamos publicando com regularidade.

Um dia, a Margarida falou-me da Associação Mar d’Água, um projecto  de defesa e divulgação do património único que é a Lagoa de Óbidos (que, para nós. os indefectíveis, será sempre a Lagoa da Foz), que, confesso, não conhecia.

Assim vim a conhecer a Ana e o Luís Costa Leal e o João Pedro Pina, hoje bons amigos, os espíritos generosos e dedicados por detrás da Mar d’Água.

Entre os várias actividades que desenvolvia, a Mar d’Água pretendia fazer uma exposição de fotografias sobre a Lagoa. A ideia era tornar a exposição viva e de impacto público, recorrendo para isso às montras de estabelecimentos comerciais nas Caldas e em Óbidos, as duas sedes de concelho com jurisdição sobre a Lagoa. A exposição fez-se, teve uma divulgação simpática na imprensa, e a Lagoa veio, como pretendíamos, ao encontro das pessoas nas ruas das Caldas e de Óbidos.

Mantivemos contacto, já transformado em amizade, e surgiu a ideia de passar algumas das fotografias a livro. Convidados os autores a participar, encontrado o patrocínio e reunidas as boas-vontades necessárias para assegurar a concepção gráfica, o projecto vingou e o livro começou a tomar forma.

Surgiu assim o “Lagoa de Óbidos, 4 quadrantes e 20 Olhares” (capa acima).

Fizemos uma sessão de lançamento público em Óbidos, com exposição de algumas das fotografias do livro. A exposição foi depois apresentada nas Caldas e o livro esgotou a edição. Foi um projecto que desenvolvemos com grande entusiasmo e dedicação e de que nos orgulhamos.

À Margarida, a Ana, ao Luís e ao João Pedro o meu agradecimento pela amizade e a saudade das noites de conversa, discussão, ideias (tantas vezes erráticas e desordenadas, como convém) e riso.