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Bull Jumping

Texto para a Revista “Outras Coordenadas” nº 5

O avião da Ethiopian Airlines descolou e ofereceu-me um último relance, ainda que fugaz, de Bet Gyorgis, a igreja em honra de São Jorge, a mais emblemática das onze Igrejas Coptas de Lalibella, no norte da Etiópia, escavadas, esculpidas ou talhadas em rocha.

Bet Gyorgis é, na opinião de alguns, a Oitava Maravilha do Mundo Antigo e eu, diante daquele prodígio do engenho primevo, regressei às minhas perplexidades dos últimos dias. O topo da igreja está ao nível do solo e a rocha foi talhada na vertical, em cruz, dando a ilusão de que se afundou com o próprio peso. Com que técnicas, cálculos e ferramentas foi possível, no século XII, talhar um monólito gigantesco e soterrado, transformando-o num templo belíssimo?

Afinal, talvez a História se deva submeter à crença de que o Rei Gebre Mesqel Lalibella, no regresso de Jerusalém, recebeu de São Jorge e do próprio Todo-Poderoso as ordens, instruções e meios, outros que não apenas terrenos, para erigir Bet Gyorgis.

Tenho a cabeça num turbilhão de pensamentos e referências, resultado das mil faces da Abissínia. Das aventuras de Corto Maltese às errâncias de Rimbaud, das fotografias de Hans Sylvester às de Gianni Giansanti, dos Rastafaris a Abebe Bekela, de Bob Marley a Hailé Selassie, das fomes devastadoras dos anos 80 ao conflito da Eritreia, do regime sanguinário do Coronel Mengistu aos anos de guerra civil.
A aterragem faz-me voltar à realidade e Adis Abbaba será apenas uma breve paragem rumo ao Sul. A partir daqui estou nas mãos de Workineh, o meu guia. Quando regressarmos a Adis teremos feito quase 2.000 quilómetros em busca das tribos do Vale do Rio Omo.

Revejo mentalmente as imagens de Sylvester e de Giansanti e contenho a custo a ansiedade de partir para Sul, ao encontro de Mursi, Eribore, Konso, Banna, Karo, Borena, Nyangatom, Dasenech, algumas entre as muitas tribos que habitam o Vale.

Mas tenho uma expectativa maior. Poder assistir ao ritual com que os Hamar marcam a passagem dos jovens do sexo masculino à idade adulta, o Bull Jumping, ou “Bullah”.

O “bullah” é uma cerimónia estruturante para a organização social dos Hamar e nenhum jovem será considerado um homem (o que significa poder casar, em regime de poligamia, constituir família, construir a sua casa de ramos de árvores, lama e excrementos de vaca, ter gado próprio) se não o fizer ou, muito pior porque o cobrirá de ridículo e humilhação para toda a vida, se falhar o teste.

Pela primeira de dezenas de vezes nos dias que se vão seguir, pergunto-lhe:

“Achas que vamos conseguir ver um Bull Jumping ?”

Worki, com a competência, diligência e paciência que vai demonstrar daí em diante, responde:

“Não sei, não é garantido, vamos ter que procurar quando chegarmos à região dos Hamar. Eles estão mais reservados, as cerimónias de Bull Jumping são em locais afastados, só conhecidos da família e das pessoas das aldeias vizinhas”.

Tenho os primeiros contactos com os Hamar no mercado de Dimeka, um caleidoscópio mágico de cores e cheiros, a porta para uma outra dimensão, que me irá deslumbrar nos dias seguintes.

Admiro a beleza invulgar das mulheres Hamar, as feições corretas, os cabelos penteados em canudos finos caídos à altura dos ombros, trabalhados com uma pasta de manteiga, lama e corante mineral que lhes dá a cor de laranja vivo. Vestem-se e adornam-se belissimamente: saias de pele de cabra com missangas, pulseiras de metal a cobrir os antebraços e pernas, colares de conchas e contas, tiaras de pele decoradas e os pesados colares, aliás inamovíveis, que revelam a sua condição de primeira, segunda ou terceira mulher de um Hamar. Algumas ostentam escarificações simbólicas nos braços, ombros e ventre, de efeito estranhamente belo.

“Já sabes alguma coisa do Bull Jumping ?”
“Estou a tentar …”

Acima de tudo, assalta-me a visão das terríveis cicatrizes nas costas, queloides brutais, grossos cordões de pele que lhes cruzam os rins.

“Worki, estas cicatrizes… ?”
“São o resultado do belo espetáculo que queres ir ver…”

Citadino de Adis mas veterano do Sul, Worki diz-me que apenas assistiu a cerimónias “bullah” umas escassas vezes.

“Porquê?”
“Porque não sei como as mulheres aguentam aquela violência”,

Rumamos a Turmi, o ponto mais importante da nação Hamar, cerca de 20.000 pessoas espalhadas pelas aldeias da região. Muitos telefonemas, perguntas, paragens e contactos depois, chega a notícia esperada com ansiedade.

“Amanhã há um Bull Jumping nesta zona. Vamos procurar um guia local que nos leve lá”

Exulto mas, logo de seguida, Worki arrefece o meu entusiasmo.

“Ainda temos que contratar o guia. Depois, ele vai ter que encontrar a aldeia e o sítio da cerimónia. Não sei até onde poderá ir o jipe e quase de certeza vais ter que fazer uns bons quilómetros a pé. Não penses que é garantido.”

Sehche, nos seus vinte e poucos anos, um Hamar de t-shirt e bermudas, sem adornos ou escarificações visíveis, é o guia que nos vai levar ao “bullah”. Saídos de Turmi, fazemos quilómetros de picadas e mata. Sehche engana-se várias vezes no caminho, pára, pergunta, retrocede, oferece boleias a outros que nos vão indicando, espero, a direcção certa.

Chegamos ao leito de um rio seco, largo, arenoso e cavado. Worki desliga o motor do jipe e, olímpico, diz-me:

“A partir daqui é contigo”

Ponho a mochila às costas, carrego quilos em máquinas, lentes, tripé, água e ansiedade.
Sehche conta-me que espera ter o seu próprio “bullah” dentro de 2 anos porque, apesar de (algo mais) urbano, “não serei um homem Hamar até o fazer”. Reminiscências de um passado não muito distante, em que os Hamar davam largam ao seu instinto guerreiro em ferozes lutas inter-tribais em que a celebração da morte de inimigos (e, também, de animais selvagens de grande porte) era perpetuada no corpo com cortes precisos que resultariam em escarificações artísticas. As guerras eram, normalmente, motivadas pela invasão, por outras tribos, das terras de pastagem e água, preciosas na estação seca, pondo em perigo a maior riqueza dos Hamar, o gado que criam.

Ao longo dos quilómetros de marcha, Sehche explica-me a complexa carga social, ritual, simbólica e familiar que o “bullah” encerra. Afinal, é uma prova que apenas um homem consegue superar, não uma criança, e, para o conseguir, contará com o apoio expresso a sangue das mulheres da sua família.

Saímos da mata e chegamos ao leito de um outro rio, onde algumas linhas de água ainda correm. A primeira parte da cerimónia será aqui, invocando o simbolismo da renovação da vida. Quando a chuva chegar o rio voltará a encher, os pastos voltarão a verdejar e o ciclo recomeçará.

Grupos de mulheres Hamar, belamente decoradas, entoam cânticos, sopram as suas cornetas, “gola”, de metal e dançam em roda. O som das fiadas de guizos que trazem à volta dos tornozelos marca o ritmo rápido da dança. O ambiente é eléctrico.

Hoje é o dia mais importante da vida do jovem Aiku, mas os preparativos para o seu “bullah” começaram muito tempo antes, quando visitou os seus familiares e vizinhos das aldeias próximas e formalizou o convite com a entrega de uma corda feita de ervas secas, com vários nós, um por cada dia até à cerimónia.
A família gastou muito dinheiro em comida, cerveja de sorgo e álcool de mel fermentado, para oferecer aos convidados. Talvez por isso, Aiku parece nervoso e apreensivo. Ostenta um estranho penteado ritual que lhe acentua o ar assustado. A responsabilidade de honrar os seus ancestrais e dignificar a família, tornando-se um homem, é esmagadora.

Irrompe, subitamente, uma grande agitação. Grupos de mulheres correm, atropelando-se, para uma curva do rio. Chegaram os primeiros ”maza” e o frenesi instala-se. Os “maza” são jovens que já fizeram o seu “bullah” mas que permanecem solteiros, seja porque os pais ainda não lhes combinaram casamento ou porque não reuniram o dinheiro, as cabras e as vacas necessárias para pagar o dote da noiva. Vivem em grupos semi-nómadas e viajam de “bullah” em “bullah”, onde são recompensados pela família do aspirante-a-homem para cumprir uma função central para a cerimónia: chicotear as mulheres!

Cabeça rapada, pinturas decorativas na cara, pulseiras, colares e penas de aves no cabelo, transportam ao ombro feixes de longas chibatas flexíveis, rebentos novos de árvores do tipo do vimeiro. São, literalmente, assaltados pelas mulheres que os perseguem, chamam, provocam, puxam, arrastam. Quando uma mulher consegue isolar um “maz” do alcance das outras, dança à sua frente num quase êxtase, soprando a sua “gola” e tenta, por todos os meios, ser vergastada.

Finalmente, o “maz” cede à provocação, puxa de uma das chibatas, levanta o braço acima da cabeça, ganha balanço e desfere um golpe seco nas costas nuas que o provocam. A dor deve ser horrível mas a mulher não emite um som e, se mostra alguma expressão, é um esgar de quase felicidade. A chibata cai no chão, partida ao meio.

A sequência de sons é arrepiante e alucinante: o chamamento da “gola”, o silvo da chibata e o rasgar da carne.

Chegaram, entretanto, outros grupos de “maza”, tantos quantos a família de Aiku conseguiu reunir e pode pagar. O ambiente é irreal e parece à beira do descontrolo. As mulheres entram nalguma alucinada forma de transe colectivo e, em todo o redor, se ouve o som metálico das cornetas, o tilintar dos guizos, os gritos provocadores das mulheres, os assobios dos chicotes e o som da pele ferida.

A princípio não consegui, sequer, esboçar o movimento de pegar na máquina fotográfica, esmagado pela intensidade da cena.

As mulheres competem violentamente entre si, cada uma tenta ser chicoteada mais vezes do que qualquer das outras. Às mais idosas, que não participam mas mostram orgulhosamente as marcas de “bullah” passadas, cabe o papel de as afastar e impedir de continuar quando os sinais sangrentos de punição começam a roçar o incrível, humanamente impossíveis de suportar.

As cicatrizes são fundamentais para uma mulher Hamar, mostram a sua força e resistência, mas principalmente a sua capacidade de apoiar os entes queridos. Hoje, ao serem marcadas pelo chicote demonstram todo o seu amor a Aiku, criando a sangue uma ligação indelével. Daqui em diante, Aiku é, também, responsável pelas que hoje sofreram por ele. Quando precisarem dele, seja em que circunstância for, Aiku virá em seu auxílio, honrando o código Hamar.
Voltam as danças de roda e os cânticos, o sangue corre de muitas feridas abertas, mas chegou a hora de prosseguir. Forma-se uma longa fila colorida que atravessa o rio. A areia do fundo é mole, enterro-me até aos joelhos e, a custo, procuro evitar que a água chegue às máquinas.

Na outra margem, o terreno é pedregoso, mais acidentado, e a mata mais densa. O carreiro estreito e os espinhos das acácias obrigam a manter uma fila única e ordenada. Dos ombros de alguns, pendem as inevitáveis AK-47. Chegamos a uma zona plana e ampla onde já se encontra uma manada de vacas. Recomeçam os cânticos e as danças e a tensão no ar cresce.

Entretanto, no recato do curral da aldeia, junto do bem mais precioso, o gado, e longe de olhares indiscretos, Aiku sujeita-se a rituais simbólicos. A família invoca os antigos e os “maza” dedicam-lhe rituais de fertilidade e procriação. O padrinho que escolheu, o “shia”, esfrega-o com areia para limpar todos os males da infância.

Aiku chega ao local do seu “bullah”. Vem completamente nu, apenas com duas tiras entrançadas de casca de árvore a rodear-lhe os ombros. Significam a sua última ligação à infância e serão imediatamente cortadas se cumprir com sucesso a passagem à idade adulta. Os homens da aldeia rodeiam Aiku que, ajoelhado numa pele de vaca, é preparado pelo “shia” com novos rituais e invocações.

Formam-se duas alas e os homens selecionam e capturam oito vacas e bois castrados que alinham lado a lado, num grupo compacto. Os “maza” mantêm-nos em posição, seguros por cornos e rabos. O grau de dificuldade da prova é aumentado, quando os lombos das vacas são esfregados com excrementos, tornando-os mais escorregadios.

A intensidade do momento cresce a um nível quase físico. Os familiares de Aiku viram as costas a Oeste, para onde os Hamar acreditam que todos os males se dirigem.

Aiku parece cada vez mais apavorado e frágil, nu, rodeado por centenas de pessoas ululantes. Tem pela frente a sua prova de vida, quatro percursos que ditarão a sua sorte e o seu futuro como Hamar.

Toma balanço, salta para o primeiro animal e corre rapidamente por cima dos outros até atingir o outro extremo. Volta e torna a ir. Uma última vez e será um homem. No último percurso, falha o salto de entrada e escorrega. Os familiares gritam, uns em pânico, outros em incentivo. Aiku recupera o equilíbrio numa estranha dança feita de passos trôpegos. Joga a sina da sua vida, correndo nu em cima de vacas.
Chega ao fim com o alívio estampado no rosto e é abraçado pelo “shia”, que lhe arranca as tiras dos ombros. Já não é uma criança.

O transe colectivo começa a desvanecer-se. O sol baixo e o caminho de regresso é feito quase em silêncio. Uma catarse colectiva onde, estranhamente, me sinto participar.

As mulheres lavam-se no rio. Umas feridas começarão a cicatrizar, outras a infectar. Silenciosamente, as novas marcas do seu orgulho falarão por elas.

Amanhã, finda a festa na aldeia, Aiku rapará o cabelo e será um “maz”.

Kyiv

Texto publicado na revista “Outras Coordenadas”, nºs 3 e 4

Kiev

A Cidade das Cúpulas de Ouro

Para a Elsa Martins

Cheguei a Kiev, ou Kyiv na versão foneticamente mais correta do original em ucraniano, apenas 10 anos depois da incontornável tragédia de Chernobyl e uns escassos 5 anos após a independência.
Tinha diante de mim o extraordinário, e algo inesperado, desafio profissional de instalar e dirigir um escritório internacional de serviços de assessoria financeira em Kyiv. A proposta era profissionalmente estimulante e pessoalmente fascinante. Irrecusável, portanto. Confesso que, na altura, da Ucrânia conhecia pouco mais que o Dínamo de Kiev, Chernobyl, a renomada “Chicken Kiev” (que, aliás, não passa nem perto da gastronomia local) e o conceito apreendido na escola primária dos idos de 60 que “a Ucrânia era o celeiro da Rússia”. Ignorantemente, nem ideia da grandeza do povo, das atrocidades (várias e contínuas) da história, da excelência do intelecto, da capacidade de abnegação, sofrimento e superação dos ucranianos.

Um verdadeiro salto no escuro.

Vivia-se uma época onde tudo acontecia, a ritmo diário, com grandes e aceleradas transformações políticas, económicas, sociais, culturais. Para alguns (poucos) a fortuna súbita, dúbia e imensa, para outros (muitos, quase todos) o romper da teia, opressiva, sufocante, mas protetora, e o descobrir dum mundo novo com oportunidades e ameaças, para que, na generalidade, não estavam preparados nem informados. A História (re)construía-se à minha vista e ao meu alcance e, por vezes, deixava-me até ser um minúsculo figurante.
Por Kyiv fiquei quase três anos, magníficos de experiência de Vida. Pela realidade que me deu a conhecer, pela humildade que me mostrou ser dignificante, por me ter levado a ser um ser humano melhor, a minha gratidão à Ucrânia é eterna.

Aqui fica o meu roteiro sentimental de um povo superior e de uma cidade belíssima.

Andreyevskiy Spusk

Uma das mais antigas ruas de Kiev, outrora a via principal de ligação entre a Cidade de Cima, nobre de palácios e catedrais, e a Cidade de Baixo, habitada por mercadores e artesãos.
É hoje uma rua, na verdade uma ladeira com forte inclinação, vibrante e uma das principais atrações turísticas da cidade. Chamada a Montmartre de Kiev, a Spusk (no carinhoso diminutivo usado pelos locais) alberga galerias de arte, cafés, pequenos teatros, museus, lojas de artesanato e antiguidades.
Vendedores de souvenirs, desde memorabilia soviética às inevitáveis matrioskas, dos gorros de pelo às cópias dos relógios militares, das t-shirts “McLenin” aos trajes tradicionais, tudo se vende na Spusk. Pintores mostram os seus trabalhos na rua, músicos, cantores, atores, performers de várias artes trazem vida e animação à zona. Chegada a Primavera, começa a época de festivais, concertos, manifestações e celebrações públicas.
No ponto mais alto da Spusk, encontramos a Andreyevskaya, a Igreja de Santo André, construída no sec XVIII por ordem da Imperatriz Isabel. Diz a lenda que onde hoje corre o Deniepre havia um mar. Quando Santo André chegou à cidade, colocou uma cruz no exato sítio onde hoje se ergue a Igreja. De imediato, o mar recuou, deixando apenas alguma água no interior da colina que, quando a Igreja foi construída, brotou de uma fonte sob o altar. Por esta razão, a Igreja de Santo André não tem sinos, uma vez que o som acordaria as águas adormecidas e Kiev ficaria submerso.
Era o meu percurso sempre repetido dos domingos de manhã. Por isso lhe digo, por mais curta que seja a visita a Kiev, não fica completa sem um par de horas a vaguear despreocupadamente pela Spusk.

Bandura

A Bandura é o instrumento musical tradicional da Ucrânia. Para mim, leigo na matéria, parece-me ser uma guitarra de grandes dimensões e muitas cordas …
Na realidade, penso ser um instrumento que resume o compromisso entre uma viola, um alaúde e uma harpa, traduzido nas 68 cordas que, habitualmente, ostenta. Elemento fundamental na música tradicional da região, a bandura era presença certa nas margens da Spusk, cativando os passantes com a imagem do instrumento, a pose e habilidade do bandurista e o som encantatório que produzia.
Na minha despedida da cidade, uma das memórias que trouxe foi preciamente uma Bandura, que guardo com zelo emocional e frustração por não saber utilizar.

Circo

Uma arte maior – ensinada a nível universitário, apreciada, prestigiada e reconhecida – na tradiçãoo cultural da Europa Central e Oriental.
O Circo de Kiev tinha sede num edifício imponente – ao melhor estilo da arquitectura do realismo soviético – numa das praças mais movimentadas da cidade.
A escola circense (ao tempo) soviética foi, é, será das mais conceituadas do Mundo, a par da chinesa, então menos conhecida. Os menos novos de nós, lembrar-se-ão certamente do deslumbre que foram as primeiras apresentações do Circo de Moscovo no vetusto Coliseu dos Recreios, na segunda metade dos anos 70.
Em Kiev, no Circo, assisti a espectáculos magníficos da mais elaborada e rigorosa arte circense que me fizeram reviver tristemente os paupérrimos, por vezes degradantes, espectáculos (?) de circo ambulante que percorriam a província em Portugal nos anos 50 e 60.
Na Ucrânia o Circo tem o lugar que merece de direito, entre as Artes maiores.

Dnipro (ou Dniepre ou Slavutisch)

Dnipro ou Dniepre ou Danaper são versões do nome que os Romanos deram ao rio Slavutisch, original em Eslavo antigo do rio que banha a cidade de Kiev.
São quase 2.400 quilómetros de curso de água que, vindo do norte da Rússia, atravessa a Bielorússia e a Ucrânia, até encontrar o Mar Negro.
Nas margens do Dnipro, a norte de Kiev, fica a tristemente famosa central nuclear de Chernobyl. À data do acidente, o capricho dos elementos, nomeadamente os ventos, poupou Kiev e empurrou as chuvas e poeiras radioactivas para norte e nordeste, marcando indelevelmente, até hoje, a Bielorússia, os Países Bálticos e até a Escócia. Conheci, pessoalmente, alguns – os próprios ou seus descendentes – ucranianos de várias profissões – médicos, engenheiros, operários – que à data do acidente, aliás escondido e negado pelas autoridades soviéticas durante cerca de 7 dias até as radiações e a contaminação se tornarem evidentes, incontroláveis e inegáveis, marcharam (pelo que me asseguraram) voluntariamente a caminho da contaminação certa e da provável morte lenta e atroz. Gente de outra condição.
Apesar das medições dos níveis de radioactividade não serem superiores a qualquer outra cidade europeia, por vezes até inferiores, tomávamos algumas precauções elementares, como não beber água da torneira, mas aproveitámos o rio, em tudo o que tinha para oferecer, durante o Verão. Praias fluviais, ilhotas propensas e convidativas a passeios e actividades de ar livre, atraíam centenas de kievenses.
O Inverno trazia outro encanto ao rio, com a superfície gelada, palco de caminhadas acidentadas, pista de patinagem para os mais afoitos e corajosos, supostamente sabedores da espessura da camada de gelo.
Os mais conhecedores das manhas da invernia faziam da superfície de água gelada um cais de pesca, sentados nos seus bancos de campanha no meio do rio (!), com a linha de pesca pendurada num furo feito no gelo, até encontrar a água no estado líquido. Nunca percebi se pescavam alguma coisa ou se era apenas um passatempo aparentemente suicidário.

Evgeny Vuchetich

Escultor maior da corrente do Realismo Socialista, nasceu na cidade de Yekaterinoslav, hoje Dnipropetrovsk, na Ucrânia. Com inúmeras obras monumentais no espaço da então URSS, é o autor de um dos mais emblemáticos símbolos da cidade de Kiev, o memorial evocative da II Guerra Mundial, cuja face mais conhecida é uma estátua de 62 metros de altura, totalmente construída em titânio, conhecida como a Mãe da Pátria.
A figura feminina (a que os Ucranianos, carinhosa e respeitosamente, chamam “Olga” como invocação do nome feminino mais popular no país) tem um escudo de armas da URSS na mão esquerda – que, creio, não terá sido alterado até hoje – e uma espada erguida na mão direita. Curiosamente, se repararmos bem, a ponta da espada está cortada, como uma espátula.
Porquê ? Simples, mesmo nestas coisas das evocações históricas, o peso da religião conta mais, e a ponta da espada era mais alta do que o topo da cruz da Torre do Sino do Lavra …

Futebol (ou seja, Dynamo Kyiv)

Os ucranianos são latinamente emocionais quando o assunto é futebol. O Dínamo de Kiev é, obviamente, uma instituição da cidade, seguida, amada e idolatrada por milhares de seguidores.
Eu era visita regular do velhinho estádio Lobanosvkyi, homenagem ao treinador Valeriy Lobanovskyi, mentor do grande Dynamo de sucesso europeu e, de algum modo, da escola de futebol soviética dos anos 80. Apesar de ter apenas 16.000 lugares (para os jogos maiores e competições internacionais, o Dynamo recorria ao Estádio Olímpico), implantado no meio de (mais um) belíssimo parque da cidade, o Lobanovskyi conseguia um ambiente fantástico. As bancadas de betão eram, para protecção da neve e do gelo e para a comodidade possível dos espectadores, revestidas de estrados de madeira. O som, amplificado pelo estádio, de 16.000 pessoa a bater com os pés nos estrados de madeira era verdadeiramente impressionante e, tenho a certeza, intimidante para a equipa adversária. Tive a oportunidade de ver grandes jogos de uma magnifica equipa do Dínamo com alguns jovens jogadores que, nos anos seguintes, se imporiam no panorama europeu, Andryi Sevschenho, Sergey Rebrov, Oleg Luzhny, entre outros. Na minha festa de despedida de Kiev, os meus colegas ofereceram-me uma camisola do Dynamo que guardo com carinho.

Gorilka

É a palavra para Vodka. Pode até, mais genericamente, designar qualquer bebida alcoólica destilada (foneticamente, a palavra é muito semelhante a “queimar”, gority em ucraniano).
Muitos ucranianos destilam a sua prória Gorilka caseira, então chamada Samogon (literalmente, destilação própria ou produção própria), a partir de cereais vários, batata, mel, beterraba, etc, etc e etc. Uma das variedades mais conhecidas da vodka ucraniana, é a Pertsivka, basicamente gorilka com uma infusão de malaguetas. Muito popular entre os ucranianos, e não deixando de ser saborosa, asseguro que não proporciona um acordar muito pacífico …
A imaginação dos ucranianos é prodigiosa no que toca a aditivar, aromatizar, macerar, o que quer que seja, a sua vodka. No mercado local, encontramso assim variedades infusionadas com bagas várias, morangos, alperces, pétalas de rosa, ervas silvestres, limão, laranja, cravinho, pimenta, hortelã, ameixas, mirtilos e por aí fora. São, normalmente, envelhecidas em casa, em ciclos de sol e gelo. Haja coragem !
“And bring us a lot of horilka, but not of that fancy kind with raisins, or with any other such things — bring us horilka of the purest kind, give us that demon drink that makes us merry, playful and wild !” escreveu Nikolai Gogol, provavelmente sabendo do que falava !

Havana, aka Caribbean Club

Era a discoteca mais frequentada pelos estrangeiros residentes em Kiev no final dos anos 90. Gerida por Pepito – um cubano habanero mulato, divertidíssimo e semi-alucinado, ex-estudante de qualquer vaga carreira universitária de que nem ele próprio se recordava com precisão – que tinha decidido trocar a morna dolência caribenha pelo rigor do gelo dos Cárpatos, tinha boa música e um ambiente descontraído e agradável.
Principalmente pelas idas para a (e as vindas da) discoteca fiquei a conhecer uma realidade (alternativa) da cidade, a rede de transportes publico/privados. A rede de táxis (ditos) oficiais era escassa, principalmente à noite e durante o Inverno. A alternativa era simples e muitíssimo eficaz: bastava fazer sinal ao primeiro carro que passasse, que, após breve negociação do preço, nos conduzia ao destino pretendido. Viajei assim vezes serm conta, de dia ou de noite, em carros particulares desconhecidos, muitas vezes já parcialmente ocupados com outros passageiros, sempre sem o mínimo problema ou incidente.

Ikra

É a palavra original, em língua russa, para as ovas frescas de esturjão, o caviar. Em rigor, a designação “caviar” ou “caviar negro” deveria ser reservada às ovas de esturjões selvagens dos Mares Cáspio e Negro.
Das 4 variedades principais de caviar, o mais raro e caro é o Beluga do Mar Cáspio, acessível pelo Irão, Kazakistão, Rússia, Turkmenistão e Azerbeijão. Distingue-se pela elegância do sabor e pela untuosidade suave e dimensão dos ovos. De seguida, o caviar do esturjão Sterlet, de pequena dimensão e cor dourada, extremamente raro e hoje em dia quase extinto no estado selvagem, o caviar starlet era iguaria reservada aos Czares da Rússia, Shahs do Irão e Imperadores Austro-Húngaros. No fim da escala da qualidade, o Ossetra e o Sevruga, dado o seu paladar ser considerado mais agressivo e menos refinado e os ovos mais duros e de menor dimensão.
A captura excessiva, a pesca furtiva e a poluição têm feito diminuir drasticamente os stocks de esturjão selvagem, estando hoje a espécie sujeita a captura controlada, ou mesmo interdita, na maior parte dos países produtores. Como consequência directa, os preços de mercado dispararam para valores astronómicos.
Comecei a apreciar caviar em Kiev, quando provei, pela primeira vez, as ovas frescas, não sujeitas a processamento nem conservação. Era, na verdade, uma explosão sublime de aroma e textura que pouco, ou nada, tinha a ver com o caviar enlatado e conservado que até então eu conhecia. No mercado, em época própria, os comerciantes de caviar apresentavam uns barris pequenos de madeira, cheios (!) de uma pasta negra untuosa, fluida e olorosa. Um frasco de meio-litro de caviar fresco de primeira qualidade custava, nessa altura, entre 20 e 30 dólares.
Programa de domingo à tarde: rumo ao mercado para comprar um frasco de caviar, outro de nata azeda (smetana), uns pés de aneto ou cebolinho. Fazer uns blinis caseiros e em cada um montar uma colher de caviar, um pouco de smetana e um toque das ervas acabadas de cortar. Recuperar a garrafa de vodka do congelador e dar graças à vida.

Jovovich, Milla

Milla Jovovich é uma digníssima representante da beleza ucraniana. Top model, actriz, cantora e designer de moda, Milla nasceu em Kiev, daí partindo para deslumbrar o Mundo.
Jack Palance, Mila Kunis, Vera Farmiga, David Duchovny, Dustin Hofman, Wayne Gretzky, Andryi Sveschenko, Serguei Bubka, Wladimir e Vitaly Klitschko ou Rick Danko são apenas alguns exemplos de ucranianos de nascimento ou origem que fizeram carreira internacional de relevo no meio artístico e desportivo.

Kreschatyk

A mais conhecida e a mais movimentada das avenidas (boulevards) de Kiev, estende-se por mais de 1 quilómetro entre a Praça da Europa e a Praça Bessarabia, com o seu famoso mercado (ver Rinohk Bessarabsky).
Uma avenida ampla, monumental, bordeada de castanheiros, implantada onde outrora corria um rio num vale densamente arborizado, ao tempo uma das áreas de caça favoritas dos príncipes de Kiev. O rio terá, aliás, sido encanado com a construção da avenida fazendo, ainda nos dias de hoje. o seu curso subterrâneo ao longo da Kreschatyk até encontrar o Dnipro.
No final do século XIX, a avenida conheceu a sua primeira época de esplendor, com belos edifícios de fachadas em pedra e as melhores lojas, restaurantes, hotéis e teatros da cidade.
A Kreschatyk guarda em si e nas suas cicratizes, a história recente da cidade. De facto, durante o período de turbulência que se seguiu à Revolução de 1917, muitos dos seus edifícios foram danificados, consequência da luta pelo controlo da cidade que passou sucessivamente pelo domínio dos Ucranianos, Alemães, Polacos e Bolcheviques.
A Segunda Guerra Mundial nela escreveu algumas das suas páginas mais trágicas e sangrentas. Supostamente, a maioria dos seus edifícios foram armadilhados com explosivos numa acção de cobertura da retirada do Exército Vermelho. As divisões alemãs ocuparam a cidade em 1941 e mais de 300 dos belos edifícios da Kreschatyk foram demolidos por accionamento remoto das cargas explosivas. Durante os dois anos de ocupação alemã, a avenida foi conhecida por Eichhornstrasse. A partir de 43, com a libertação de Kiev, começaram os trabalhos de reconstrução, ao estilo arquitectónico que subsiste até aos dias de hoje e constitui um perfeito exemplo da chamada Arquitectura Estalinista, cristalizada no famoso Hotel Ukraina (ver Maidan Nezalezhnosti)
Hoje em dia, a Kreschatyk volta a albergar algumas das melhores lojas de Kiev, de grandes marcas internacionais, e, de novo, restaurantes e esplanadas. Nos domingos de Primavera e Verão, a avenida é fechada ao trânsito e é ponto de encontro e passeio de habitantes e visitantes.

Lavra

Situado nas colinas da margem direita do Dnipro, o magnífico Kievo-Pecherskaya Lavra aponta as suas cúpulas douradas ao céu, sendo, juntamente com a Catedral de Santa Sofia, Património Mundial da Humanidade.
Conhecido como o Mosteiro das Cavernas (literalmente “pechera” significa caverna,e “lavra” é a designaçãoo comum para os mais importantes mosteiros de clausura masculina da Igreja Ortodoxa), é desde a sua fundação em 1015 uma das referências principais da Igreja Ortodoxa Cristã do Oriente. A comunidade foi iniciada por António, um monge grego que se estabeleceu nas colinas do Dnipro, fundadndo a Ordem dos Antonitas.
Ao longo dos tempos, o Lavra tornou-se no maior e mais importante mosteiro da Grande Rússia. São 30 hectares muralhados que albergam dezenas de edificações, mais de 20 catedrais, igrejas e templos, museus e o complexo de cavernas que servia de retiro e abrigo aos monges. Hoje em dia, os edifícios de maior relevo são a Torre do Sino (ponto mais elevado de Kiev – ver Evgeny Vuchetich), a Grande Igreja da Trindade, a Igreja do Salvador de Berestov, e a Catedral da Ascenção, destruída durante a Segunda Grande Guerra e agora reconstruída.
Para além da beleza e grandiosidade da decoração dos templos, nomeadamente as cúpulas douradas e os frescos no seu interior, o Lavra alberga ainda importantes colecções de ícones ortodoxos.
Continua a ser o mais simbólico ponto de peregrinação para os Cristãos Ortodoxos de todo o mundo, fazendo Kiev ser conhecida como a “Jerusalem Russa”.

Maidan Nezalezhnosti

Ou a Praça da Independência (designação que adquiriu após 1991, com a indepência política do país), porventura a praça mais emblemática de Kiev.
Atravessada pela Kreschatik, a Praça da Independência é um ponto incontornável da vida da cidade, albergando desfiles, paradas, concertos, manifestações de vária ordem e hordas de turistas.
Tal como a Kreschatyk (ver acima), a praça foi severamente danificada durante a 2ª Guerra e posteriormente reconstruída ao estilo soviético, com edifícios imponentes como o Hotel Ukraina ou a Estação Central de Correios.
Tornou-se internacionalmente (re)conhecida por ser o centro de dois movimentos políticos de massas, a “Ucrânia sem Kuschma” e a posterior “Revolução Laranja”, e das alterações políticas e sociais a que deram origem. O famoso primeiro discurso de Viktor Yuschenko (ver abaixo) como Presidente eleito teve, simbolicamente, lugar nesta belíssima praça.
Renovada a partir de 2001, numa obra não isenta de polémica e contestação, a sua decoração tradicional com 6 fontes e a bela coluna que suporta a estátua do protector de Kiev, o Arcanjo Miguel, foi substancialmente alterada, acrescentando, agora, os monumentos aos míticos fundadores de Kiev, os irmãos Kyi, Schek and Khoryv, ao Cossaco Mamay, herói do folclore nacional, e a evocação de uma mais recente descoberta, com a estátua de Berehynia, uma obscura deusa eslava, protectora do lar e evocativa da sociedade matriarcal.

Neve

Dado o clima tranquilo com que a Natureza nos brindou, a minha preferência por viajar rumo a Sul e a minha falta de gosto e aptidão para os chamados desportos de Inverno, a neve nunca foi um destino que procurasse voluntariamente. Por isso, o meu contacto com a neve e o gelo limitava-se a ser uma consequência de deslocações profissionais de curta duração.
Após duas breves visitas a Kiev no fim da Primavera e no Verão, que me deram a ver uma cidade de clima ameno, com imensos parques, jardins floridos, zonas verdes e colinas arborizadas nas margens do Dnipro, assentei arraiais no fim de Setembro, quando a temperatura já tinha começado a baixar, os dias a encurtar e as folhas a cair das árvores. Passou Outubro e entrou Novembro. Terá havido uns (poucos) dias de chuva porque, de repente, o frio chegou e a chuva passou rapidamente a neve. Enquanto a temperatura continuou a descer, a altura de neve no chão começou a subir. Os parques cobriram-se de branco, os passeios tornaram-se mais estreitos com os montes de gelo acumulados pela limpeza das ruas, o rio Dnipro gelou e … assim ficou até Março.
Foi o meu primeiro Inverno. Habituei-me ao gorro de pelo de marta, às luvas e cachecol polartec, ao sobretudo e aos sapatos pesados. Estranhamente, o frio, continental, era muito mais suportável do que poderia imaginar, apeasr de o termómetro raramente espreitar acima dos 0º e frequentemente de precipitar abaixo dos 10º ou 15º negativos. Na minha memória fica para sempre gravada aquela madrugada na estação de comboios de Kiev quando, ao chegar da distante Lvov, perto da fronteira polaca, o termómetro me brindou com uns calorosos 29º negativos.
Fiquei a perceber o que quer dizer a palavra f-r-i-o !

Ópera

Kiev tem uma oferta cultural riquíssima, variada e muito competente em muitas disciplinas. A tradição, o ensino, a dignificação das profissões artísticas e a abundância de oferta fazem de Kiev uma cidade culta e dos seus habitantes consumidores regulares de espetáculos de qualidade.
Uma das principais salas da cidade é o magnífico Teatro de Ópera de Kiev, onde tive o privilégio de assistir a produções excelentes, clássicas, contemporâneas e modernas, de vários reportórios, todas de irrepreensível competência e qualidade interpretativa, musical e cénica.
Mas encontramos igual nível de oferta, em quantidade e qualidade, nos Museus, Galerias de Arte, Concertos, Espetáculos de Dança que abundam na cidade ou, mesmo nos performers de várias Artes que, na Primavera e Verão, animam as ruas.
A excelência do ensino das Artes na Ucrânia continua a atrair estudantes de todo o Mundo.

Pushkinskaya

O 4º andar do nº 25 da Rua Pushkin (Pushkinskaya) foi a minha casa durante o tempo que vivi em Kiev. Uma rua curta e pacata, paralela à longa e movimentada Kreschatyk, prestando homenagem ao grande poeta, romancista e dramaturgo russo Aleksandr Sergeevich Pushkin (1799-1837), por muitos considerado maior poeta russo e o fundador da moderna literatura russa.
Consegui, numa época em que a oferta era ainda muito escassa dado que a procura se limitava a umas centenas de estrangeiros ocidentais a residir na cidade, um apartamento amplo e luminoso, remodelado com bom gosto em registo moderno.
A dois passos da minha porta, no início de uma belíssima avenida arborizada de estilo parisiense, o Boulevard Taras Shevshenko, resistia a última estátua de Lenine na cidade. No outro extremo da Pushkinskaya, o Teatro Lesya Ukrainka, com a sua programação de clássicos russos.
Do outro lado da rua, o Pilsner, um bar/restaurante checo, onde se podia beber uma ótima cerveja e provar pratos tradicionais. Por lá parava, por vezes, um outro Shevshenko, Andriy, ídolo da Kiev futebolística e estrela maior do Dynamo que, no final dessa época, rumaria a Itália e à glória no AC Milan.

Quimeras, Casa das

Construída em 1901 pelo arquitecto Vladislav Gorodezhkii como uma residência particular, a Casa das Quimeras (do original em russo) é um edifídio estranhíssimo, único e, de algum modo, assustador.
As fachadas exteriores – e, ao que se diz, também o interior – são decoradas com esculturas em cimento de animais fantásticos e mitológicos, peixes, elefantes, rinocerontes, antílopes, sapos gigantes, lagartos, serpentes e crocodilos. Um susto.
A casa está, como seria de esperar, rodeada e submersa nas mais variadas lendas de assombrações e maldições, tragédias e desgraças.
Correntes mais prosaicas defendem que seria apenas uma manifestação auto-laudatória do talento de Gorodezhkii ou, até, uma manobra publicitária para promoçãoo da fábrica de cimento de que seria sócio.
De qualquer modo, é sentimento comum dos Kievenses que a má sorte perseguirá quem a habitar. Mesmo que não seja a má sorte, pesadelos serão certamente…

Rinohk Besarabsky

Situado num dos extremos da Kreschatyk, o mercado (rinohk), bem como a praça, são assim designados em evocação da Bessarábia, uma região conquistada aos Turcos e hoje integrada na província de Odessa, território ucraniano, portanto.
Era o ponto central de acesso a frescos de qualidade, numa época em que a cidade ainda não oferecia grandes facilidades de abastecimento de produtos de gosto e consumo mais “ocidentalizado”.
. Do Besarabsky recordo com saudade os pontos de venda de caviar (ver Ikra), de cogumelos e frutos silvestres, de lacticínios, com uma longa escala de produtos – natas, soros, iogurtes, cremes – entre o leite e o queijo fresco. Recordo, sem evitar um sorriso nostálgico, que apesar do mercado ser coberto, a temperatura de Inverno era (muito) baixa. Por isso, as vendedoras ostentavam, naturalmente, imponentes e vistosos casacos e gorros de pele de marta, raposa e outra bicharada invernosa e peluda.

Santa Sofia

Património da Humanidade, tal como o Lavra, a Catedral de Santa Sofia foi fundada em 1037, no consulado de Yaroslav Mudry, patrono das artes, cultura e educação, que fez de Kiev uma das cidades mais importantes do seu tempo.
A Catedral servia de ponto central da vida cultural e política do Kievan Rus (espaço geográfico e político que viria a dar origem à Ucrânia, à Rússia e à Bielorússia), palco de recepção de embaixadas estarngeiras, registos de crónicas e sede da primeira Biblioteca Russa de que há registo.. Severamente atingida durante as pilhagens de tártaros e mongóis, a Catedral conheceu períodos de declínio e abandono. Foi reconstruída no sec XVIII no melhor estilo Barroco Ucraniano adquirindo as cúpulas douradas e torneadas que a tornam famosa, mas conservando, no entanto, o interior bizantino. Mantem, desde então, a forma que lhe conhecemos hoje.
Mundialmente famosa pelos frescos e mosaicos bizantinos do sec XI, principalmente o mosaico gigantesco de 6 metros de altura da Virgem Maria em oração.

Taras Shevchenko

Taras Shevchenko (1814-1861), foi um poeta, artista e humanista ucraniano.
Os seus poemas e escritos são considerados a base na nova literatura ucraniana e, em grande extensão da língua ucraniana contemporânea. A dimensão literária de Shevchenko ofusca injustamente o seu talento como pintor e ilustrador.
A sua escrita inflamada e nacionalista, colocou-o em rota de conflito com o Imperador Nicolau I, o que lhe valeu a prisão e o exílio nos confins dos Urais, sob ordem do Czar de “estrita vigilância e total proibição de escrever ou pintar”.
Hoje, referencia maior da cultura ucraniana, Taras Shevchenko, homenageado em estátuas, memoriais, toponímia em toda a Ucrânia e, também, no estrangeiro, dá nome à principal universidade do país.

Ukrayina

O segundo maior país da Europa em superfície, um gigante ainda semi-adormecido, charneira e síntese entre a Europa central e a Europa de leste, entre o norte e o sul, cruzamento de climas, culturas, artes e hábitos.
A História encarregou-se de fustigar continuamente o povo ucraniano com guerras, opressões, invasões, desastres vários, imerecidos, injustos e imorais.
A Cultura, por seu lado, guarda um lugar cimeiro para os talentos do povo ucraniano em todas as disciplinas artísticas, da literatura à música, das artes plásticas à dança, do teatro ao circo.
O lema nacional “Liberdade, Concordância e Bondade” revela bem a natureza deste povo abnegado, corajoso e solidário.

Vladimirskaya

A Catedral de São Vladimiro é, seguramente, um dos mais belos exemplos da arquitectura religiosa de Kiev.
Construída no sec XIX por ordem expressa do Imperador Nicolau I para comemoração do nono centenário da baptismo da Rússia, foi financiada por uma recolha nacional de fundos ordenada pelo próprio Czar. Por exemplo, diz-se que o Kievo-Pecherskaya Lavra (ver Lavra) ofereceu um milhão de tijolos utilizados na edificação da Catedral.
Dedicado a São Vladimiro, o Príncipe russo que baptizou a Rússia e instituiu o cristianismo como religião oficial, o templo foi concebido ao estilo Bizantino Antigo, ostentando magníficos frescos e mosaicos que têm como tema central condutor a história do Cristianismo Ortodoxo Russo. O recanto dos ícones, bem como paredes e pavimentos são feitos em mármores multicolores oriundos de várias partes do Mundo.
Vladimirskaya é considerada o exemplo maior da Arte Religiosa Russa.

Wladimir Horowitz

Aclamado como um dos maiores pianistas de todos os tempos, Wkadimir Horowitz nasceu em Kiev em 1903.
Tendo ganho nome e reputaçãoo no espaço da, então, URSS, Horowitz foi nomeado para representar a Ucrânia bo Concurso Internacional Chopin de Piano em 1927. Decidiu, nessa altura, não participar no concurso e permanecer no Ocidente, tornando-se um dos primeiros dissidentes da área da cultura.
A sua técnica invulgar, com posicionamento das mãos pouco ortodoxo, e o domínio do instrumento, nomeadamente as amplitudes sonoras que conseguia produzir, fizeram de Horowitz um intérprte lendário e aclamado pelo público.
Contudo, uma personalidade instável e depressiva, ter-lhe-ão condicionado alguns dos melhores anos da sua carreira artística. Voltou, com esplendor artístico, aos palcos nos anos 80, com digressões triunfantes pela Rússia (onde regressou pela primeira vez desde 1925 e deu ao mundo o extraordinário “Horowitz in Moscow”) e pela Europa.
Casado com a filha de Arturo Toscanini, veio a morrer em 1989, sendo sepultado no mausoléu do maestro italiano, em Milão.

Yushenko, Viktor

Viktor Andriyovich Yushenko foi a figura central de um histórico processo eleitoral que levaria à chamada Revolução Laranja.
Candidato da oposição às eleições presidenciais de 2004 contra Viktor Yanukovysch, foram necessárias 3 rondas eleitorais para ser, finalmente, proclamado como Presidente da Ucrânia. De facto, após uma primeira ronda onde nenhum dos candidato obteve maioria, a segunda volta foi manchada por alegadas fraudes eleitorais, em favor de Yanukovych, constituindo o detonador para a mobilização pública popular e expontânea que, durante 13 dias consecutivos ocupou a Praça da Independência em protesto.
O movimento alastrou a outras cidades ucranianas e, finalmente, o Supremo Tribunal da Ucrânia ordenou a realizaçãoo de uma terceira ronda a 26 de Dezembro de 2004, que garantiu a vitória a Yushenko.
A campanha eleitoral tinha sido, de qualquer modo, extremamente violenta e agressiva. Já em Setembro desse ano, Yushenko tinha ficado seriamente doente por alegado envenenamento por dioxinas que, para além de o colocarem às portas da morte, o desfiguraram para sempre. Será mais um dos casos em que a verdade absoluta dificilmente virá ao de cima, até porque, pelo meio e até hoje, subsistem acusações mútuas e cruzadas de falsificação e manipulação de provas e evidências.
Antes da política, Viktor Yushenko fez carreira como um conceituado economista. Enquanto Governador do Banco Central da Ucrânia, idealizou, promoveu e dirigiu a modernização do sector bancário ucraniano e a abertura ao exterior. Nessa época, tive o privilégio de conhecer e trabalhar com Viktor Yushenko.

Zoloti Vorota

Ou as Portas de Ouro, são o ponto central da única secção da muralha primitiva de Kiev que chegou aos nossos dias.
Construída no início do sec XI, inspirada na entrada de Constantinopla, era a porta de honra de entrada na cidade de Kiev para dignitários e visitantes ilustres. Conta a lenda que Yaroslav Mudry, prometeu à Virgem a edificação de uma igreja caso vencesse a batalha final contra os nómadas que pretendia expulsar de Kiev. Vencida a batalha, edificou nas Portas de Ouro, a Igreja da Anunciação.
Foram um marco importante na história e na vida da cidade até ao sec XVIII, altura em que já completamente soterradas por deslocamentos de terras.
Recuperadas a partir de 1830, as Portas de Ouro foram devolvidas ao lugar central que devem ocupar na história e na imagem da cidade.

Butão

Publicado na revista “Outras Coordenadas”, nº2, Setembro/Outubro 2011

O A319 da Druk Air levantou de Katmandou numa manhã gloriosa. Era Novembro, o ar estava fresco mas de um brilho cortante de cristal, límpido e transparente a perder de vista.

O voo para a Terra do Dragão Trovejante (o Reino do Butão) é, em si mesmo, um acontecimento e, por mais que tenha sido lido, contado, descrito ou fotografado, nada nos prepara para o que está para acontecer.

Atravessadas as nuvens de algodão branco imaculado, mergulhamos no azul quase eléctrico do céu e entramos numa outra dimensão. Estamos, como Judy Garland feita Dorothy, “over the rainbow”, acima das nuvens e acima da terra. A rota é esmagadora, deixando à vista próxima quatro das cinco montanhas mais altas do Mundo, os Montes Everest, Lhotse, Makalu e Kangchenjunga.

Entendo melhor, ainda que sem compreender completamente, o fascínio do alpinismo extremo, a conquista dos grandes picos. Imagino que a sensação de tocar o tecto do Mundo, de alcançar o último ponto de contacto físico com o espaço infinito “lá em cima” seja avassaladora e valha todas as penas, sacrifícios e dores da subida. A chegada ao fim da Terra e ao início do Céu Curiosamente, ainda na véspera tinha jantado na dimensão mais terrena do Rum Doodle, o restaurante fetiche dos alpinistas, em Katmandou. As paredes, o tecto, os balcões, enfim, todo o restaurante está forrado de fotografias, autógrafos, peças de equipamento, gorros, luvas, registos de alpinistas e escaladas anteriores, umas históricas, antigas ou recentes, outras falhadas e porventura trágicas. Na parede atrás da minha mesa, estava a bandeira portuguesa autografada pelo João Garcia. Do outro lado do Mundo, por detrás das montanhas, reencontramos a nossa essência. Conforta a alma e, vá-se lá saber porquê, prende a voz e enevoa a vista.

Pelo tempo de voo, deveria estar a iniciar a aproximação ao Butão. Contudo, em toda a extensão que o ângulo de visão que a vigia do avião permitia, via apenas e só um maciço montanhoso. Só depois soube que Paro, o único aeroporto internacional do Butão escalado apenas pela Druk, a transportadora aérea butanesa, está a quase 3.000 metros de altitude, um vale estreito e não muito longo, encaixado entre montanhas acima dos 5.000 metros … Olhei para o mapa, vi a rota marcada a pontinhos vermelhos até ao aeroporto, mesmo ali atrás das montanhas.

Só (ainda) não fazia ideia como se chegava lá. Foi então que o comandante decidiu dar uso ao sistema de som e, finalmente, percebi. “Senhores passageiros estamos a iniciar a aproximação à pista do aeroporto de Paro. Para os que visitam o Butão pela primeira vez, informo que a abordagem é feita em ângulos de voo menos habituais, com inclinações laterais pronunciadas, pelo que passaremos a baixa altitude sobre algumas árvores, habitações e relevos naturais. Os pilotos da Druk Air são especialmente qualificados e treinados para a abordagem à pista de Paro, pelo que a segurança dos passageiros está garantida. Desejo a todos a continuação de uma boa viagem”. Começou então uma manobra de aterragem alucinante, a bordo de um A319 com espírito de Red Bull Air Show. O avião, literalmente, “entrou” pela montanha, numa rota sinuosa de procura de vales e espaços entre montes, voando em inclinações bem acima dos 60 graus, ora para um lado, ora para o outro, porque de outra maneira simplesmente não caberia. E, facto, a passar poucas dezenas de metros acima de construções, árvores, pessoas, pontes, vacas e o que mais passasse lá por baixo. À saída de um último gancho, vi, finalmente, a pista para onde o aparelho, recuperada a compostura e a posição horizontal, se precipitou, talvez ele próprio ansioso por descer a chão firme. Logo no primeiro contacto com a Terra do Dragão Trovejante, concluí que a passagem labiríntica por entre os montes é, afinal, uma fantástica máquina do tempo.

Do lado de cá, entra-se noutra era, noutro tempo, noutra dimensão. Supostamente é um pequeno Reino (na verdade, é um conto de encantamentos), cravado na vertente Oriental dos Himalaias, comprimido entre a China, o Tibete e a Índia. Tem aproximadamente o tamanho da Suíça, 39.000 quilómetros quadrados, dos quais mais de 70% cobertos por manchas florestais. Estica-se, para lá das nuvens, até aos 7.500 metros de altitude e dá pátria a pouco mais de 600.000 pessoas. É, ainda, o guardião da escola Vajrayana do Budismo Mahayana, uma complexa, multidisciplinar e distinta escola de pensamento budista, desenvolvida ao longo dos séculos e que hoje tem o seu reduto final no Reino do Butão.

A escola Vajrayana desenvolveu um ritual próprio, exclusivo e distinto das outras correntes de pensamento e prática do Budismo, baseado nas Tantras, as principais escrituras (daí poder ser igualmente referido como “Budismo Tântrico”), escritas numa língua codificada, inacessível a não-iniciados, parte de um complexo e misterioso sistema de comunicação verbal, visual e não verbal, “the twilight language”. O Budismo mantém, alias, uma presença permanente, vibrante e marcante na sociedade butanesa. Dzongs (as autoridades administrativas regionais associadas ao mosteiro principal), mosteiros, stupas (as construções rituais de cúpulas abobadadas e terminadas em pináculo), as rodas de oração pintadas, as bandeiras e flâmulas de várias cores com inscrições rituais, espalhadas pelos montes, pelas habitações e pelos locais públicos, são presença constante no país. Os monges de hábitos escarlates percorrem as ruas das povoações e calcorreiam montes na direcção de mosteiros pendurados nas escarpas mais remotas e agrestes de paredes de rocha aparentemente inacessíveis, de que o exemplo mais conhecido é o famoso “Tiger’s Nest”.

Pergunto-me como se acede aos mosteiros, mas mais me pergunto como foram edificados e como são abastecidos. As pessoas que circulam as stupas agitando pequenas rocas em movimentos circulares, o som encantatório de gongos, singing bowls e sinos rituais, cheiros inebriantes de incensos e essências tornam o tempo lento.

As originalidades e peculiaridades deste pequeno reino são, contudo, infindáveis. Sendo uma monarquia, o regime político configura uma democracia parlamentar representativa. O ano de 2008 foi, aliás, determinante para a evolução pacífica do regime político e da forma de governo do país. De facto, em 2008 foi aprovada a Constituição, tiveram lugar as primeiras eleições gerais democráticas que escolheram o Primeiro-Ministro e, simultânea e paradoxalmente, foi coroado Jigme Khesar Namgyel Wangchuck, um jovem nascido em 1980, como o 5º Druk Gyalpo, ou seja o 5º Rei Dragão do Butão. Um dos compromissos assumidos pelo jovem Rei foi a defesa intransigente do “Gross National Happiness” como primeira prioridade da nação, considerando-a mais importante para o povo que o cantado e decantado “Gross Domestic Product”, o nosso PIB, indicador de referência em todo o “mundo material”.

O índice GNH é um conceito fascinante, desenvolvido nos anos 70 pelo 4º Druk Gyalpo, que determina que as pessoas têm obrigação de ser felizes, que o reino tem obrigação de fazer os seus habitantes felizes, e que, por isso, as principais decisões, muitas vezes estruturantes e fundamentais, devem ser tomadas com o objectivo de aumentar a felicidade e não necessariamente de aumentar a riqueza material. Aprovado pelo Parlamento como indicador fundamental do progresso do país, o índice GNH deu lugar a toda uma dinâmica nacional de medição do “grau de felicidade”. Sugiro que faça uma pequena busca na internet se quiser ter uma ideia mais aproximada de todo o racional por detrás deste conceito. A medição assenta em nove princípios fundamentais: bem-estar psicológico, valor do tempo, vitalidade comunitária, cultura, saúde, educação, diversidade ambiental, estilo de vida e governo. Medidas práticas? Deixo apenas uma, a meu ver ilustrativa: o Butão concede apenas 5.000 vistos anuais a turistas estrangeiros. A proposta de duplicação desse número de entradas foi, em 2009, chumbada no Parlamento por … poder afectar negativamente o índice GNH!

É, aliás, notório o cuidado posto na defesa da tradição e da herança cultural. Um indicador espantoso foi para mim o facto de o Butão ter um traje nacional que a esmagadora maioria das pessoas usa diariamente (por sinal, nos Dzonghs e mosteiros, só é permitida a entrada a nacionais que enverguem o traje nacional). Desde o século XVII, os homens usam o gho, uma espécie de quimono muito largo, até aos joelhos, traçado à frente e apertado com um cinto tecido, com golas e grandes punhos brancos. O volume de pano permite transportar pequenos objectos num bolso interior. O traje completa-se com sapatos pretos e meias altas, também pretas. As mulheres usam a kira, basicamente um pano enrolado à volta do corpo, abaixo dos braços, preso por pregadeiras e alfinetes artesanais, os koma. O traje fica completo com uma camisa de um tecido tipo linho, chamada wonju e, se o tempo o pedir, um casaco colorido chamado toego. É um espectáculo admirável ver toda uma população orgulhosa do seu traje nacional.

Tal como é quase comovente o orgulho com que falam do seu animal nacional, o Takin (burdorcas taxicolor), um antílope raríssimo, com o aspecto de uma cabra gigante, de pelo denso e comprido, que vive acima dos 4.000 metros de altitude. Matar um takin é um dos crimes mais graves que se pode cometer no Butão. Ou da sua arquitectura multicolor de madeira entalhada ou, paradoxo dos paradoxos, o seu desporto nacional, o tiro com arco, que praticam em pistas especialmente construídas, com grandes assistências e material sofisticado. Com ou sem GNH, há que procurar ser mais feliz. Eles parecem consegui-lo. É um destino único e imperdível.

Vá ao Butão e faça o favor de ser mais feliz.!

AMAZÓNIA

Publicado na revista “Outras Coordenadas”, nº1, Julho/Agosto de 2011

Cristovam (na grafia soletrada pelo próprio) é um índio pequeno e franzino, amazonense legítimo de múltiplas origens e idade incerta. Carrega em si a cartografia das andanças dos antepassados. O pai, peruano, legou-lhe o tipo físico, o cabelo preto sedoso e uns olhos mornos, amendoados, a remeter para um Oriente mais longínquo. Da mãe, cabocla do Brasil, herdou o tom de pele, o humor instantâneo e o jeito característico. Vai ser o meu guia de caminhada pela selva amazónica, com pernoita em abrigo de campanha.

A minha base é um eco-resort, 4 horas de carro a nordeste de Manaus. Deixada para trás a estrada estadual, passamos a estradas e caminhos municipais, atravessamos vilas, lugares e lugarejos cada vez mais pequenos e dispersos. Sorrateiramente, a selva aproxima-se cada vez mais. Um último desvio e entramos numa pista de terra até ao destino final.

As instalações são básicas, mas o sítio é belíssimo, na orla da floresta densa e luxuriante. Sinto-me isolado do Mundo, sem televisão, nem internet, nem telemóveis. Também não há telefone nem comunicação via rádio, porque há duas semanas atrás, no meio de uma trovoada formidável, um raio caiu sobre a antena, destruindo-a sem reparação possível.

Cristovam apresenta-se ao romper da madrugada, carregando todo o equipamento necessário para 2 dias de caminhada: uma mochila pequena (venho depois a descobrir que, lá dentro, tem um impermeável, uma t-shirt, uma rede de dormir e uma lanterna), chapéu e uma faca de mato !!! Por mim, estou dispensado da faca de mato. Ocorreu-me, pela primeira vez, que um rádio de comunicação talvez pudesse ser útil. Partimos depois do pequeno-almoço. À bagagem acrescentámos umas sanduíches e fruta. Urbano, perguntei se não levávamos água. Que não era preciso, na mata havia.

Aos primeiros passos adentro, a floresta torna-se esmagadora, inebriante, alucinante, toma posse de nós. É um mundo fora deste Mundo. À medida que nos embrenhamos na mata, a escala torna-se gigantesca. Os troncos das árvores percorrem dezenas de metros na vertical, tentando romper até à luz do Sol, os fungos têm o tamanho de plantas, as lianas são grossas como ramos. Os insectos são do tamanho de pássaros. A luz, filtrada pela abóbada de folhas lá no alto, chega difusa, recortada. Ao princípio há um trilho visível, depois já não. Meia hora depois, perdi toda e qualquer referência ou ponto de orientação. Estamos no fim da estação seca, o que permite aceder a zonas da floresta mais remotas e baixas, normalmente alagadas. Mesmo assim, a percentagem de humidade no ar é grande e ribeiros de água cristalina cruzam a mata em correntes rápidas, formando, aqui e ali, pequenos lagos. Ocorreu-me, pela segunda vez, que um rádio de comunicação talvez pudesse ser útil.

Cristovam é um guia experimentado e conhecedor, ou pelo menos assim espero. Já trabalhou nas explorações petrolíferas, na borracha, já guiou expedições científicas. Agora dedica-se a passear turistas pela orla da floresta. Suponho que se divirta com o espanto que provoca, mas não sei como se orienta. Abre caminho à facada por entre mato, folhas, lianas, fetos. Vai descobrindo pássaros, insectos, ruídos, plantas, cheiros. Explica com fluência a relação simbiótica entre os indígenas e a floresta, mostra as plantas medicinais, as que dão alimento, as funcionais e utilitárias, as perigosas. Lê a floresta, percebe a linguagem, conhece os sinais. Eu não, o que me dá uma aguda percepção da minha vulnerabilidade, da minha fragilidade, da minha dependência. Ao fim das primeiras horas de caminhada, não sei se estou kilómetros dentro da mata ou apenas a poucas centenas de metros da orla. Ocorreu-me que um rádio de comunicação talvez pudesse ser útil.

Descobre ninhos de tarântula, cavados na terra e camuflados por folhas secas. Com um ramo final e flexível, sonda o buraco até o bicho, imponente e furioso, sair pronto a atacar. Não deixa de ser estranho, ver sair da terra uma aranha do tamanho de um prato de sopa. Apanha uma cobra de metro e meio à mão, após uns passos que me parecem de uma dança ritual mas que o colocam na posição pretendida e lhe permitem agarrar a cobra mesmo atrás da cabeça. Diz-me que é uma jibóia e eu acredito. Chama-me a atenção para uma folha de árvore de um verde luminoso. Quando lhe pega, a ”folha” debate-se, afinal é um insecto, tipo gafanhoto, de 15 cms de comprimento.

De repente, estaca, fica imóvel e faz-me sinal para ficar igualmente quieto e silencioso. Fareja o ar e murmura: “Tá sintindo esse chêro ruim ?” Ainda não, continua a cheirar-me apenas a selva húmida. Uns passos cautelosos mais adiante e um odor forte, pestilento e adocicado começa realmente a instalar-se. “Tá algum bicho morto aqui por perto. Vou dar uma olhada, sai daqui não.” Aí está uma instrução que eu cumpro com prontidão. Cristovam desaparece silenciosamente no meio da mata, na direcção do cheiro a morte. Fico, mudo e quedo, a pensar no que aconteceria se, por qualquer razão, não conseguisse voltar. Ocorreu-me, de novo, que um rádio de comunicação talvez pudesse ser útil.

Volta algum tempo depois (pareceram-me muitos minutos, mas talvez não fossem assim tantos) com a explicação “A onça matou um porco grandão bem ali. Tem uns dois dia. Comeu uma metadi e deixou o resto pra depois, quem sabi a onça ainda tá por aqui. Vambora, o sítio tá meio perigoso”. A onça-pintada, ou jaguar (Panthera onca) é o terceiro maior felino do mundo, a seguir ao tigre e ao leão. É, basicamente, um leopardo muito maior e muito mais forte que o seu parente africano. Nesta região amazónica, os números são ainda abundantes, não correndo perigo de extinção. Na estação seca, a caça, principalmente porcos selvagens, com uma maior área de movimentação, torna-se mais dispersa. É então que a onça se aventura mais, frequentemente até zonas habitadas onde ataca vacas, cabras e porcos domésticos, que arrasta facilmente para a mata. Podia ter um animal destes a metros à minha frente, atrás de mim, na árvore ao meu lado, a seguir atentamente cada passo, cada movimento meu. Ocorreu-me que um rádio de comunicação seria certamente útil, e que uma faca de mato talvez não fosse suficiente.

Pelos insondáveis trilhos da mata, Cristovam chegou ao abrigo para a noite. Numa clareira, à beira de um ribeiro de água corrente, uma estrutura em madeira, construída em altura, com três patamares, ligados entre si por uma escada muito estreita. Procura rastos recentes junto à água “porque a onça vem aqui pra bebê. Subir até lá em cima, não sobi não que a escada é muito estreita pra ela”.Subimos até ao último patamar, a uns 10 metros do chão, para montar as redes. O facto de lá estar um cesto com o jantar, trouxe-me de volta à realidade e fez-me perceber que não estaríamos assim tão longe da base.

Cristovam contou-me histórias de expedições anteriores, semanas em autosubsistência pela selva, que me reduziram à minha condição de aventureiro de avenida. Contou-me, também, a história do seu pai peruano, que trabalhava na desmatagem de uma zona remota, perto da fronteira com o Peru. Uma manhã “foi sozinho na mata e a onça o matou só na maldadi”.

Subi para a rede, adormeci ao som dos extraordinários sons da Natureza e sonhei com a onça.

Ocorreu-me que levar um rádio de comunicação teria sido um disparate, inútil e sem sentido.

Cadernos de Viagem

Surgirá em breve nas bancas um novo projecto de leitura de viagens, uma revista bimestral chamada “Outras Coordenadas”. O conceito editorial pretende criar uma revista para viajantes e não tanto um guia de sugestões comerciais de viagem para turistas sedentários e acomodados.

Os promotores são o António Braz Monteiro e o Nuno Abreu, dois jovens empresários que decidiram lançar-se no mundo da edição.

Conheço bem o António, filho de um bom Amigo, que partilha comigo o gosto pelo todo-o-terreno e pelos Land Rovers. Conheci o Nuno, quando ambos me apresentaram o projecto e, gentilmente, me convidaram a participar com fotografias de viagem e um ou outro texto.

As minhas contribuições serão apresentadas sob o título de “Cadernos de Viagem” e, despretensiosamente, relatam algumas das minhas memórias, visuais ou escritas, de viagem.

Ao António e ao Nuno desejo as maiores felicidades e sucessos nesta nova aventura.