Mulher Hammar
Vale do Rio Omo
Etiópia
Fotografia: João Martins Pereira
Publicado em Apontamentos, Fotografia, Viagens
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Texto para a Revista “Outras Coordenadas” nº 5
O avião da Ethiopian Airlines descolou e ofereceu-me um último relance, ainda que fugaz, de Bet Gyorgis, a igreja em honra de São Jorge, a mais emblemática das onze Igrejas Coptas de Lalibella, no norte da Etiópia, escavadas, esculpidas ou talhadas em rocha.
Bet Gyorgis é, na opinião de alguns, a Oitava Maravilha do Mundo Antigo e eu, diante daquele prodígio do engenho primevo, regressei às minhas perplexidades dos últimos dias. O topo da igreja está ao nível do solo e a rocha foi talhada na vertical, em cruz, dando a ilusão de que se afundou com o próprio peso. Com que técnicas, cálculos e ferramentas foi possível, no século XII, talhar um monólito gigantesco e soterrado, transformando-o num templo belíssimo?
Afinal, talvez a História se deva submeter à crença de que o Rei Gebre Mesqel Lalibella, no regresso de Jerusalém, recebeu de São Jorge e do próprio Todo-Poderoso as ordens, instruções e meios, outros que não apenas terrenos, para erigir Bet Gyorgis.
Tenho a cabeça num turbilhão de pensamentos e referências, resultado das mil faces da Abissínia. Das aventuras de Corto Maltese às errâncias de Rimbaud, das fotografias de Hans Sylvester às de Gianni Giansanti, dos Rastafaris a Abebe Bekela, de Bob Marley a Hailé Selassie, das fomes devastadoras dos anos 80 ao conflito da Eritreia, do regime sanguinário do Coronel Mengistu aos anos de guerra civil.
A aterragem faz-me voltar à realidade e Adis Abbaba será apenas uma breve paragem rumo ao Sul. A partir daqui estou nas mãos de Workineh, o meu guia. Quando regressarmos a Adis teremos feito quase 2.000 quilómetros em busca das tribos do Vale do Rio Omo.
Revejo mentalmente as imagens de Sylvester e de Giansanti e contenho a custo a ansiedade de partir para Sul, ao encontro de Mursi, Eribore, Konso, Banna, Karo, Borena, Nyangatom, Dasenech, algumas entre as muitas tribos que habitam o Vale.
Mas tenho uma expectativa maior. Poder assistir ao ritual com que os Hamar marcam a passagem dos jovens do sexo masculino à idade adulta, o Bull Jumping, ou “Bullah”.
O “bullah” é uma cerimónia estruturante para a organização social dos Hamar e nenhum jovem será considerado um homem (o que significa poder casar, em regime de poligamia, constituir família, construir a sua casa de ramos de árvores, lama e excrementos de vaca, ter gado próprio) se não o fizer ou, muito pior porque o cobrirá de ridículo e humilhação para toda a vida, se falhar o teste.
Pela primeira de dezenas de vezes nos dias que se vão seguir, pergunto-lhe:
“Achas que vamos conseguir ver um Bull Jumping ?”
Worki, com a competência, diligência e paciência que vai demonstrar daí em diante, responde:
“Não sei, não é garantido, vamos ter que procurar quando chegarmos à região dos Hamar. Eles estão mais reservados, as cerimónias de Bull Jumping são em locais afastados, só conhecidos da família e das pessoas das aldeias vizinhas”.
Tenho os primeiros contactos com os Hamar no mercado de Dimeka, um caleidoscópio mágico de cores e cheiros, a porta para uma outra dimensão, que me irá deslumbrar nos dias seguintes.
Admiro a beleza invulgar das mulheres Hamar, as feições corretas, os cabelos penteados em canudos finos caídos à altura dos ombros, trabalhados com uma pasta de manteiga, lama e corante mineral que lhes dá a cor de laranja vivo.
Vestem-se e adornam-se belissimamente: saias de pele de cabra com missangas, pulseiras de metal a cobrir os antebraços e pernas, colares de conchas e contas, tiaras de pele decoradas e os pesados colares, aliás inamovíveis, que revelam a sua condição de primeira, segunda ou terceira mulher de um Hamar. Algumas ostentam escarificações simbólicas nos braços, ombros e ventre, de efeito estranhamente belo.
“Já sabes alguma coisa do Bull Jumping ?”
“Estou a tentar …”
Acima de tudo, assalta-me a visão das terríveis cicatrizes nas costas, queloides brutais, grossos cordões de pele que lhes cruzam os rins.
“Worki, estas cicatrizes… ?”
“São o resultado do belo espetáculo que queres ir ver…”
Citadino de Adis mas veterano do Sul, Worki diz-me que apenas assistiu a cerimónias “bullah” umas escassas vezes.
“Porquê?”
“Porque não sei como as mulheres aguentam aquela violência”,
Rumamos a Turmi, o ponto mais importante da nação Hamar, cerca de 20.000 pessoas espalhadas pelas aldeias da região. Muitos telefonemas, perguntas, paragens e contactos depois, chega a notícia esperada com ansiedade.
“Amanhã há um Bull Jumping nesta zona. Vamos procurar um guia local que nos leve lá”
Exulto mas, logo de seguida, Worki arrefece o meu entusiasmo.
“Ainda temos que contratar o guia. Depois, ele vai ter que encontrar a aldeia e o sítio da cerimónia. Não sei até onde poderá ir o jipe e quase de certeza vais ter que fazer uns bons quilómetros a pé. Não penses que é garantido.”
Sehche, nos seus vinte e poucos anos, um Hamar de t-shirt e bermudas, sem adornos ou escarificações visíveis, é o guia que nos vai levar ao “bullah”. Saídos de Turmi, fazemos quilómetros de picadas e mata. Sehche engana-se várias vezes no caminho, pára, pergunta, retrocede, oferece boleias a outros que nos vão indicando, espero, a direcção certa.
Chegamos ao leito de um rio seco, largo, arenoso e cavado. Worki desliga o motor do jipe e, olímpico, diz-me:
“A partir daqui é contigo”
Ponho a mochila às costas, carrego quilos em máquinas, lentes, tripé, água e ansiedade.
Sehche conta-me que espera ter o seu próprio “bullah” dentro de 2 anos porque, apesar de (algo mais) urbano, “não serei um homem Hamar até o fazer”. Reminiscências de um passado não muito distante, em que os Hamar davam largam ao seu instinto guerreiro em ferozes lutas inter-tribais em que a celebração da morte de inimigos (e, também, de animais selvagens de grande porte) era perpetuada no corpo com cortes precisos que resultariam em escarificações artísticas. As guerras eram, normalmente, motivadas pela invasão, por outras tribos, das terras de pastagem e água, preciosas na estação seca, pondo em perigo a maior riqueza dos Hamar, o gado que criam.
Ao longo dos quilómetros de marcha, Sehche explica-me a complexa carga social, ritual, simbólica e familiar que o “bullah” encerra. Afinal, é uma prova que apenas um homem consegue superar, não uma criança, e, para o conseguir, contará com o apoio expresso a sangue das mulheres da sua família.
Saímos da mata e chegamos ao leito de um outro rio, onde algumas linhas de água ainda correm. A primeira parte da cerimónia será aqui, invocando o simbolismo da renovação da vida. Quando a chuva chegar o rio voltará a encher, os pastos voltarão a verdejar e o ciclo recomeçará.
Grupos de mulheres Hamar, belamente decoradas, entoam cânticos, sopram as suas cornetas, “gola”, de metal e dançam em roda. O som das fiadas de guizos que trazem à volta dos tornozelos marca o ritmo rápido da dança. O ambiente é eléctrico.
Hoje é o dia mais importante da vida do jovem Aiku, mas os preparativos para o seu “bullah” começaram muito tempo antes, quando visitou os seus familiares e vizinhos das aldeias próximas e formalizou o convite com a entrega de uma corda feita de ervas secas, com vários nós, um por cada dia até à cerimónia.
A família gastou muito dinheiro em comida, cerveja de sorgo e álcool de mel fermentado, para oferecer aos convidados. Talvez por isso, Aiku parece nervoso e apreensivo. Ostenta um estranho penteado ritual que lhe acentua o ar assustado. A responsabilidade de honrar os seus ancestrais e dignificar a família, tornando-se um homem, é esmagadora.
Irrompe, subitamente, uma grande agitação. Grupos de mulheres correm, atropelando-se, para uma curva do rio. Chegaram os primeiros ”maza” e o frenesi instala-se. Os “maza” são jovens que já fizeram o seu “bullah” mas que permanecem solteiros, seja porque os pais ainda não lhes combinaram casamento ou porque não reuniram o dinheiro, as cabras e as vacas necessárias para pagar o dote da noiva. Vivem em grupos semi-nómadas e viajam de “bullah” em “bullah”, onde são recompensados pela família do aspirante-a-homem para cumprir uma função central para a cerimónia: chicotear as mulheres!
Cabeça rapada, pinturas decorativas na cara, pulseiras, colares e penas de aves no cabelo, transportam ao ombro feixes de longas chibatas flexíveis, rebentos novos de árvores do tipo do vimeiro. São, literalmente, assaltados pelas mulheres que os perseguem, chamam, provocam, puxam, arrastam. Quando uma mulher consegue isolar um “maz” do alcance das outras, dança à sua frente num quase êxtase, soprando a sua “gola” e tenta, por todos os meios, ser vergastada.
Finalmente, o “maz” cede à provocação, puxa de uma das chibatas, levanta o braço acima da cabeça, ganha balanço e desfere um golpe seco nas costas nuas que o provocam. A dor deve ser horrível mas a mulher não emite um som e, se mostra alguma expressão, é um esgar de quase felicidade. A chibata cai no chão, partida ao meio.
A sequência de sons é arrepiante e alucinante: o chamamento da “gola”, o silvo da chibata e o rasgar da carne.
Chegaram, entretanto, outros grupos de “maza”, tantos quantos a família de Aiku conseguiu reunir e pode pagar. O ambiente é irreal e parece à beira do descontrolo. As mulheres entram nalguma alucinada forma de transe colectivo e, em todo o redor, se ouve o som metálico das cornetas, o tilintar dos guizos, os gritos provocadores das mulheres, os assobios dos chicotes e o som da pele ferida.
A princípio não consegui, sequer, esboçar o movimento de pegar na máquina fotográfica, esmagado pela intensidade da cena.
As mulheres competem violentamente entre si, cada uma tenta ser chicoteada mais vezes do que qualquer das outras. Às mais idosas, que não participam mas mostram orgulhosamente as marcas de “bullah” passadas, cabe o papel de as afastar e impedir de continuar quando os sinais sangrentos de punição começam a roçar o incrível, humanamente impossíveis de suportar.
As cicatrizes são fundamentais para uma mulher Hamar, mostram a sua força e resistência, mas principalmente a sua capacidade de apoiar os entes queridos. Hoje, ao serem marcadas pelo chicote demonstram todo o seu amor a Aiku, criando a sangue uma ligação indelével. Daqui em diante, Aiku é, também, responsável pelas que hoje sofreram por ele. Quando precisarem dele, seja em que circunstância for, Aiku virá em seu auxílio, honrando o código Hamar.
Voltam as danças de roda e os cânticos, o sangue corre de muitas feridas abertas, mas chegou a hora de prosseguir. Forma-se uma longa fila colorida que atravessa o rio. A areia do fundo é mole, enterro-me até aos joelhos e, a custo, procuro evitar que a água chegue às máquinas.
Na outra margem, o terreno é pedregoso, mais acidentado, e a mata mais densa. O carreiro estreito e os espinhos das acácias obrigam a manter uma fila única e ordenada. Dos ombros de alguns, pendem as inevitáveis AK-47. Chegamos a uma zona plana e ampla onde já se encontra uma manada de vacas. Recomeçam os cânticos e as danças e a tensão no ar cresce.
Entretanto, no recato do curral da aldeia, junto do bem mais precioso, o gado, e longe de olhares indiscretos, Aiku sujeita-se a rituais simbólicos. A família invoca os antigos e os “maza” dedicam-lhe rituais de fertilidade e procriação. O padrinho que escolheu, o “shia”, esfrega-o com areia para limpar todos os males da infância.
Aiku chega ao local do seu “bullah”. Vem completamente nu, apenas com duas tiras entrançadas de casca de árvore a rodear-lhe os ombros. Significam a sua última ligação à infância e serão imediatamente cortadas se cumprir com sucesso a passagem à idade adulta. Os homens da aldeia rodeiam Aiku que, ajoelhado numa pele de vaca, é preparado pelo “shia” com novos rituais e invocações.
Formam-se duas alas e os homens selecionam e capturam oito vacas e bois castrados que alinham lado a lado, num grupo compacto. Os “maza” mantêm-nos em posição, seguros por cornos e rabos. O grau de dificuldade da prova é aumentado, quando os lombos das vacas são esfregados com excrementos, tornando-os mais escorregadios.
A intensidade do momento cresce a um nível quase físico. Os familiares de Aiku viram as costas a Oeste, para onde os Hamar acreditam que todos os males se dirigem.
Aiku parece cada vez mais apavorado e frágil, nu, rodeado por centenas de pessoas ululantes. Tem pela frente a sua prova de vida, quatro percursos que ditarão a sua sorte e o seu futuro como Hamar.
Toma balanço, salta para o primeiro animal e corre rapidamente por cima dos outros até atingir o outro extremo. Volta e torna a ir. Uma última vez e será um homem. No último percurso, falha o salto de entrada e escorrega. Os familiares gritam, uns em pânico, outros em incentivo. Aiku recupera o equilíbrio numa estranha dança feita de passos trôpegos. Joga a sina da sua vida, correndo nu em cima de vacas.
Chega ao fim com o alívio estampado no rosto e é abraçado pelo “shia”, que lhe arranca as tiras dos ombros. Já não é uma criança.
O transe colectivo começa a desvanecer-se. O sol baixo e o caminho de regresso é feito quase em silêncio. Uma catarse colectiva onde, estranhamente, me sinto participar.
As mulheres lavam-se no rio. Umas feridas começarão a cicatrizar, outras a infectar. Silenciosamente, as novas marcas do seu orgulho falarão por elas.
Amanhã, finda a festa na aldeia, Aiku rapará o cabelo e será um “maz”.
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